Abrimos uma porta de madeira. Bom, na verdade ela está entreaberta. Quando se entra ali, os cartazes nas paredes de uma saleta de reuniões vão aparecendo. ‘Fora Yeda’, ‘Desaparecidos’ (desaparecidos do período ditatorial brasileiro) definem o interesse por política. Olhando ao lado, uma sala com dois computadores, a qual é separada de outra sala por uma parede de pouco concreto e muito acrílico. São os ambientes da sala de redação e do estúdio de gravação, respectivamente. Assim como quase todas as rádios, de uma sala se vê o que se passa na outra. É basicamente nesses três ambientes em que se encontra o espaço da RádioCom.
De estação de rádio em estação de rádio não muda muita coisa. Muda o estilo de música predominante na emissora, muda a voz dos apresentadores. De resto, praticamente o mesmo foco de notícias, as frases simples e diretas, a previsão do tempo e, claro, a enxurrada de comerciais publicitários. Rádio sobrevive dos anúncios. Uma equipe radiofônica abrange técnicos operadores, radialistas, jornalistas e prestadores de serviço que ganham salário assim como em qualquer outro emprego. O problema é que depender da venda de espaço publicitário pode trazer, digamos, uma leve pressão ideológica junto. Porém, de uns anos para cá, a aparição de rádios denominadas ‘comunitárias’ fura essa pressão predominante na comunicação. A pelotense RádioCom, 104.5FM, é uma destas.
Depois de tudo… a aprovação do Decreto
A Lei que regula as rádios comunitárias foi criada em 1998. Os trâmites para legalizar e poder colocar em funcionamento uma rádio comunitária não são simples. Vagarosos e em muitos passos, a concessão pode demorar anos para sair. De acordo com o Ministério das Comunicações, é assim:
1. Juntar as associações comunitárias e fundações sem fins lucrativos interessadas no Serviço de Radiofusão Comunitária;
2. Colocar em seus estatutos o objetivo ‘executar o Serviço de Radiodifusão Comunitária’;
3. Preencher formulário anexado no site do Ministério das Comunicações;
4. Enviar por postal para a Esplanada dos Ministérios;
5. Aguardar uma publicação no Diário da União, a qual avisará se o município onde a rádio deve funcionar está habilitado a serviços de radiofusão comunitária;
6. Se na publicação constar que não, parar por aqui, não há muito o que fazer;
7. Se na publicação constar que sim, preencher mais alguns dados e aguardar a análise do Ministério;
8. Se houver somente uma rádio requerindo a concessão, o projeto técnico deve ser enviado, mas se houver mais de uma, há alguns critérios de desempate os quais, se não servirem para desempatar, terminam em um sorteio;
9. Depois, se tudo for aprovado, bom… você ainda não pode colocar a rádio em funcionamento. Ainda é necessária uma análise feita pelo Congresso Nacional e a publicação de um Decreto Legislativo.
Parceria com movimentos sociais
Roger, um dos jornalistas que trabalham na rádio, sabe bem desses critérios morosos. ‘Aqui em Pelotas disseram que não tinha ainda esse serviço (refere-se ao passo 5), mas aí foram fazendo concessão pra um, depois pra outro e pra nós nada. Há menos de um ano é que conseguimos a nossa.’
Na manhã de sexta, dia 6 de agosto, o Núcleo Popular de Jornalismo da rádio encontrava-se quase integralmente na sala da entrada. Além do núcleo, estavam também ‘Anita’ (como é chamada Ana Isabel, professora de Educação Artística e apresentadora do programa Manhã Cultural) e José Luís, o ‘Zé’, operador da RádioCom. Dia de reunião. Às 10h30min estavam sentados nos bancos pretos para debater principalmente os pontos fracos dos programas jornalísticos Contraponto e Navegando. Sugestões, críticas, elogios. Todos podem dar pitaco. São análises múltiplas que vem acarretando no aperfeiçoamento e na maturidade dos programas. ‘Todo mundo aqui deve ter rádio no celular. Aqui no centro pega em qualquer lugar.’ Vanessa é jornalista, produz e apresenta o programa Contraponto. Ela sabe o quanto a opinião dos colegas é importante para o aperfeiçoamento do trabalho.
Carlinhos, Leon, Didi (Ediane), Roger, Fábio e Juliano fazem parte do núcleo de jornalismo. Entre dificuldades e êxitos, fazem um trabalho diferente do que costumamos encontrar na grande mídia. ‘A rádio surgiu pra dar espaço para os movimentos sociais.’ Com o tempo, Roger diz que a parceria entre a RádioCom e os movimentos sociais foi se tornando natural. Ambos se procuram mutuamente. A rádio dá voz, ou melhor, abre espaço para que a voz dos movimentos não seja abafada.
Selecionam e ‘des-selecionam’ quem bem entendem
Além das pautas sociais, pautas culturais, notícias mais factuais, músicas variadas (mas nenhuma naquele tipo enquadrado como ‘Top 10’), debates, entrevistas. Entre estas, as últimas mais faladas foram as com Hermeto Pascoal (que fazia show na cidade) e com Plínio de Arruda Sampaio, candidato à presidência pelo PSOL. A entrevista com Plínio fez o estúdio lotar, mas ‘aqui tem gente de tudo… tem gente da estrelinha, gente do solzinho…’ Entre risadas, Jorge brinca que acha que só não tem quem vote no Serra ali no meio. Em tom mais sério, encara que não virar questão partidária a guia principal evita que as discussões atrapalhem a rotina.
As rádios comunitárias são, em sua maioria, sustentadas pelos sindicatos e órgãos que as compõem. Publicidade na rádio tem critério rígido. Pode se receber apoio cultural de entidades locais apenas para custear algum programa. Não se pode mencionar os produtos ou os serviços da entidade. Na RádioCom, o dinheiro oriundo de publicidade chega a ser simbólico, pois a ideia não é sobreviver disso. Aliás, funcionários contratados são poucos. A maior parte da equipe é pessoal voluntário. O grande problema da rádio é que, tirando nós, que estamos na ‘pegada’ todo o dia aqui… o resto talvez não se sinta com muito compromisso. Roger comenta que, quando o pessoal se forma e vê que precisa ganhar dinheiro mesmo, acaba sendo engolido pelo mercado. Alguns da equipe são oriundos de outras rádios. ‘Aqui tem pessoal excluído pelas outras rádios por pensar um pouco demais, digamos assim. Tu conheces a situação aqui?’
Na verdade, a situação é parecida na maioria dos locais. Veículos de comunicação nas mãos de poucos, que selecionam e ‘des-selecionam’ quem eles bem entendem. Acabam ficando aqueles que casam com a posição editorial do veículo, muitas vezes passando por cima de suas próprias posições e valores.
‘Bah, e existe isso?’
Para não precisar deixar a paixão por esse outro viés de comunicação, Roger, Ediane, Vanessa e outros jornalistas no núcleo estão criando uma cooperativa de notícias. A ideia é montar uma espécie de agência de notícias focada em pautas com as quais eles trabalham na rádio. Pautas de movimentos sociais, entre elas. A cooperativa seria a maneira de trabalhar com essa comunicação mais plural sem abrir mão de sobreviver com algo que, de fato, seja paixão, e não vergonha.
A RádioCom é sustentada, em maior parte, por 10 sindicatos. São eles que mantêm as despesas. Há também os apoiadores, que ajudam nessa parte. A sala onde a rádio funciona é cedida por um dos sindicatos. O blog da rádio é atualizado com a colaboração de todo o núcleo. Cabe a cada um ter a responsabilidade de transcrever entrevistas e notícias e adequá-las à forma escrita. Twitter, Orkut e Facebook eram também atualizados por todos. Na reunião do dia 6 de agosto, ficou decidido que Fábio, por suas afinidades com a rede, seria o encarregado principal dessa parte. A não ser, claro, quando estivesse no ar.
Na questão Twitter, todos se surpreendem ao notar o retorno do ouvinte. Muitas das ‘chamadas’ para os programas e muitas das notícias são retwittadas. A rede social na internet de fato é uma amiga de grande peso para os meios alternativos de comunicação. Ajuda a mostrar um outro lado, que quase sempre se contrapõe à grande mídia tradicional. No caso da rádio, aliar a internet com a emissora é uma boa forma de não entrar apenas no ouvido dos que se dizem ‘alternativos’. Roger pensa e diz: ‘Quando as pessoas colocam aqui na rádio acho que elas pensam: Bah, e existe isso? Ou: Bah, e eles tocam isso mesmo?’
Os ideais que o comunicador não deve abandonar
A internet ainda tem acesso restrito no Brasil. No entanto, o rádio é um veículo popular. Ainda que bem mais ouvido antigamente, em sua época de ouro, não há quem não tenha um aparelhinho simples ou um celular com rádio FM, como dizia Vanessa na reunião. Portanto, casar a movimentação e a divulgação que ocorrem na internet, e que a ultrapassam para a conversa de rua (e de bar, e de faculdade, e de trabalho, e de ônibus…) com o acesso mais amplo ao rádio está sendo um fator de popularização do rádio. ‘Não popular, massivo… mas no sentido de acesso.’ Didi e a equipe não têm em visão ser um veículo de massa, mas sim, serem disseminadores locais de uma informação mais democrática e plural.
Levar cultura, conhecimento e informação não filtrados pelo filtro de quem teme colocar nas mãos da população o poder de contestação e de monitoração. Não, ninguém ali na RádioCom se diz imparcial ou neutro. Ali, de alguém se ouve: ‘Eu não acredito em imparcialidade, não.’ Mas na equipe também não se engana, afirmando que uma notícia, por exemplo, é pura e simplesmente o retrato da verdade.
Quando se redige, se coloca uma bagagem de vivência e de valores na mensagem, ainda que se busque ao máximo neutralizá-los. Talvez o maior problema dos meios tradicionais e massivos seja a insistência em afirmar neutralidade, escondendo posições nas entrelinhas (às vezes nem tanto nas entrelinhas assim) e afirmando que a verdade está ali e que cabe ao receptor extrair sua posição depois da leitura/visualização/audição do conteúdo. Bom, na verdade todos têm ideologias. Assumi-las não é problema nenhum. O problema em si está em negá-las e escondê-las. O melhor seria ou assumir, dizendo: ‘Bom, nosso veículo tem tal posição e você que está lendo precisa ler sabendo disso’, ou realmente se esforça para neutralizar ao máximo uma posição, buscando, nem que seja, a exposição das várias facetas de um fato.
Dar margem às vozes, sem autenticar apenas algumas poucas: é isso o que as rádios comunitárias devem fazer. Sabemos que, assim como existem muitas Organizações não Governamentais (ONG´s) falsas, também há muitas rádios comunitárias que não funcionam de acordo com os princípios para os quais deveriam atentar. A RádioCom, no entanto, vem mostrando aos pelotenses um exemplo de rádio com compromisso social. Anita, a apresentadora do Manhã Cultural, olha pra cima e diz assim: ‘É, a rádio é descompromissada.’ Todos ficam quietos. Descompromissada? É, descompromissada no sentido de não ter o rabo preso como as outras. Poder falar o que se enxerga e o que se reflete, o que se ouve na rua, o que se percebe como demanda. Aí mora um diferencial. São ideais os quais um comunicador não deveria abandonar, mesmo que as forças por sobrevivência pressionem por corromper. Não é fácil. O que se vê é que é difícil e tentador. Mas não é regra. É uma questão de princípios.
Para ler mais sobre a visão, história e filosofia da RádioCom, clique aqui. Lá é possível, também, conhecer a programação e escutar a rádio ao vivo.
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Integrante da revista online Viés