Quando começaram a pipocar as primeiras notícias sobre o interesse do governo em utilizar a rede de fibras da Eletronet como backbone (backhaul) para levar internet aos mais de 90% de municípios do país que nem sonham com banda larga, pensei aqui com os meus botões: será que a ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, vai ter coragem de desmascarar a dupla Minicom/Anatel e abrir a caixa-preta da comunicação de dados para desencalhar a grana do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST)?
Novas emoções surgiram quando o coronel Oliva Neto, ex-secretário nacional de Assuntos Estratégicos, começou a falar para todo mundo que o governo pretendia adotar por aqui o modelo open reach, igual ao da Inglaterra. Neste modelo, uma grande concessionária é responsável pelo fornecimento da infra-estrutura de transporte das informações de telecomunicações, em âmbito nacional e internacional, de forma isonômica e neutra em relação à concorrência para todas as prestadoras locais de quaisquer modalidades de serviços de telecom, não importando se for telefonia, comunicação de dados, sinais de rádio e TV, sinais de fumaça etc. Pensei: ‘Caramba! Parece que a Dilma e o coronel Oliva vão fazer reaparecer o Sistema Nacional de Telecomunicações (SNT)’, o serviço de troncos criado em 1962 pela lei 4.117 com a finalidade de interligar as redes locais das quase 1.200 operadoras de telefonia existentes naquela época e que, apesar da sua importância estratégica para a soberania do país, foi fraudulentamente ‘desaparecido’ do mapa em 1997 pelos prepostos da Telefonica e da MCI nomeados por Fernando Henrique para as presidências da Telebrás e da Embratel, respectivamente.
Cartel de concessionárias
Apesar do nome oficial de serviço de troncos, por causa do diâmetro dos antigos cabos interurbanos de telefonia, o SNT constituiu a rede pública de longa distância, a espinha dorsal de todos os serviços públicos de telecomunicações do Brasil, que foi implementada com muuuiiiitos bilhões de cruzeiros, cruzados e reais provenientes do finado Fundo Nacional das Telecomunicações, de tarifas públicas, dos contratos de planos de expansão da telefonia e até do Tesouro Nacional. Um patrimônio público formado por milhares de quilômetros de fibras ópticas, centros de comutação, cabos submarinos, satélites e mais uma monte de outros penduricalhos high-tech.
Até julho de 1997, por determinação expressa da lei 4.117, o SNT era operado em regime de monopólio pela Embratel. A carrier, na época estatal, além de realizar as interconexões de longa distância da telefonia, também explorava os serviços públicos de telex, de repetição de sinais de rádio e TV, de estações costeiras, de transmissão e recepção através de satélites, assim como os serviços públicos de transmissão de dados nas modalidades de comutação por circuitos (ex. redes Transdata e Interdata) e comutação por pacotes (ex. redes Renpac e internet). Todos os serviços de dados da Embratel eram prestados através da Rede Nacional de Transmissão de Dados (RNTD), que é parte integrante do SNT.
Diante da necessidade imperiosa de o governo manter o SNT sob seu controle, até por questões de segurança nacional, o art. 207 da lei 9.472 (LGT) determinou expressamente que, até o dia 17/09/97, a Embratel deveria pleitear a celebração de contrato de concessão para explorar o serviço de troncos. Porém, ignorando a lei, os prepostos da Telefonica e da MCI, em parceria com os lobistas da revisão constitucional de 1993 que passaram a comandar a Anatel, tiveram a brilhante idéia de, ao invés da rede de troncos, outorgarem à Embratel uma concessão fajuta para exploração de ‘serviços de STFC de longa distância’.
Isto resultou que, na ausência de uma concessionária específica para operá-lo, o SNT acabasse sendo capturado por um cartel de quatro grandes concessionárias do STFC, que passou a utilizar as redes públicas para exploração de serviços em regime privado, cobrando os preços que bem entendesse, como no caso das redes IP da RNTD, que respondem por cerca de 90% do tráfego internet no Brasil e cujos preços para os usuários finais chegam a ficar até quatro vezes acima daqueles praticados em outros países.
Cinco providências
Nas minhas divagações, os supostos planos da Casa Civil se tornaram claros após os comentários de que a Telebrás iria ser reativada, pois como a lei 5.792/72 e o decreto 74.379/74 estão em pleno vigor, a empresa ainda é a concessionária geral dos serviços públicos de telecomunicações. Desta forma, imaginei que a ministra Dilma iria arrumar um jeito de fazer com que o ministro Hélio Costa tomasse logo as seguintes providências, que vêm sendo empurradas com a barriga pelo Minicom desde a publicação da LGT, em julho de 1997:
1.
Exigir que a Embratel finalmente celebre contrato de concessão para explorar industrialmente a rede de troncos e suas conexões internacionais (SNT), conforme determina expressamente o art. 207 da LGT, de forma a fazer com que a empresa volte a desempenhar as suas funções originais de fornecedora de infra-estrutura da rede pública de transporte para todas as prestadoras de serviços de telecomunicações. Vale destacar que a existência da concessionária do serviço de troncos é essencial para assegurar a operação integrada das redes públicas de telecomunicações em âmbito nacional e internacional, nos termos do art. 146 da LGT. Isso porque, nos casos de litígios insolúveis entre prestadoras, sempre haverá a possibilidade de o governo determinar, em nome do interesse público, que as redes locais sejam interconectadas ‘na marra’ através das centrais de comutação da rede de troncos.2.
Extinguir a concessão para serviços de STFC de longa distância da Embratel, pois, além da LGT não prever a sua existência, essa concessão impede que sejam imputadas obrigações de universalização e continuidade das redes de longa distância para a concessionária do serviço de troncos e, conseqüentemente, que as verbas do FUST sejam utilizadas na expansão do backbone IP da RNTD para levar a rede internet a todos os municípios do país.3.
Determinar a criação de novas subsidiárias Telebrás, específicas para exploração de serviços públicos de comunicação de dados, que deverão assumir a operação das redes IP metropolitanas da RNTD, ora sob domínio ilegal das concessionárias do STFC, que as estão explorando clandestinamente.4.
Alterar o Plano Geral de Outorgas para fazer constar a existência da concessionária do serviço de troncos e definir as áreas de concessão dos serviços públicos de comunicação de dados.5.
Criar Planos de Metas de Universalização específicos para o serviço de troncos e para os serviços públicos de comunicação de dados que contenham metas detalhadas para o atendimento das instituições beneficiárias dos recursos do FUST (incisos V a VIII do art. 5º da lei 9.998/00) e priorizem o atendimento às comunidades remotas.Taxas de fiscalização ilegais
Mas, para que as coisas realmente entrem nos eixos na área de telecom, será necessário que o Poder Executivo publique o decreto com o Regulamento Geral dos Serviços de Telecomunicações (Livro III da LGT), assim como os regulamentos específicos para o STFC, SMP e SCM, ora artificialmente regidos por meras minutas de propostas de regulamentos aprovadas por resoluções da Anatel que, nos termos da Constituição Federal, da LGT e da lei 9.649/98, não possuem qualquer valor legal. Obviamente, o regulamento geral deverá estabelecer regras claras para as interconexões entre as redes das prestadoras locais e a rede de troncos do SNT, tanto para a telefonia de longa distância quanto para os serviços de comunicação de dados.
Por força do art. 150 da Constituição Federal, o Executivo também terá de enviar ao Congresso um projeto de lei propondo o estabelecimento dos valores que serão cobrados pelas concessões, permissões ou autorizações para a exploração de serviços de telecomunicações, assim como terá de propor alterações na lei 9.691/98 para incluir os valores das taxas de instalação e fiscalização de estações do SMP e do SCM, que não constam na referida lei, de forma a acabar de vez com as arbitrariedades que estão sendo praticadas pela Anatel, como no caso dos fornecedores de conexões internet Wi-Fi que, para ‘legalizarem’ as suas atividades, são obrigados a pagar 9 mil reais por autorizações do ainda inexistente Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), além de taxas de fiscalização (TFIs e TFEs), que jamais poderiam incidir sobre equipamentos de radiação restrita aderentes ao padrão IEEE 802.11.x, considerados como eletrodomésticos de livre uso pela população.
Corações e votos
O fato é que enquanto a Anatel não levar uma ‘enquadrada’ parecida com aquela que o ministro Jobim aplicou na Anac, nada impede que a autarquia, em mais um daqueles muitos delírios em que se imagina como sendo um quarto poder da República, invente de cobrar taxas pela utilização de controles remotos de TV, telefones sem fio, controles de portões de garagens, fornos microondas e demais equipamentos vendidos em supermercados que operam em freqüências públicas.
Assim, apenas cumprindo e fazendo o Minicom cumprir a legislação existente, Dilma Rousseff acabaria com a farra do cartel que se apoderou do Sistema Nacional de Telecomunicações, o que incentivaria a entrada de novos investidores e a livre concorrência no mercado de telecom, especialmente nos serviços de redes IP. Afinal, como a LGT estabelece em seu art. 69 que a telefonia é uma modalidade de serviço diferente da comunicação de dados e determina expressamente, em seu art. 86, que concessionárias de serviços públicos de telecomunicações devem explorar exclusivamente a modalidade de serviço objeto de suas concessões, isto resultaria na transferência imediata das redes IP metropolitanas para as novas subsidiárias Telebrás e o fim dos monopólios dos serviços de conexões internet baseadas na tecnologia DSL. Permitiria também ao governo utilizar o backbone da Embratel e as redes IP metropolitanas para promover a inclusão digital com recursos do FUST, sem precisar negociar ou dar satisfações a empresários.
Imagino que, pela postura irrepreensível demonstrada até aqui na chefia da Casa Civil, a ministra Dilma realmente vá fazer isso, até para conquistar os corações (e votos para a sua candidatura à Presidência em 2010) dos milhões de cidadãos que continuam barrados do baile da internet.
Um serviço bizarro
Porém, existe o problema da banda podre da área de telecom que – após ter conseguido abafar com sucesso o escândalo dos grampos do BNDES; a conta tucana de 150 milhões de dólares; a operação carnaval da PF; e duas CPIs – continua aí, firme e forte, pronta para cumprir as determinações do ministro das Comunicações vitalício que, desde o dia 30/7/199, comanda o setor diretamente de sua sala localizada na capital paulista, auxiliado por alguns ex-conselheiros da Anatel.
Só para variar, os caras estão armando um novo cambalacho para entregar os serviços de comunicação de dados (e a grana) do FUST às concessionárias de telefonia. Contando nos dedos, esta é a terceira vez que eles tentam a mesma coisa (brasileiro não desiste nunca…). Na primeira tentativa, em 2001, a Anatel pegou carona em dois estranhos decretos do governo Fernando Henrique Cardoso que estabeleciam metas de universalização genéricas para supostos ‘serviços de telecomunicações’ (decretos 3.753/01 e 3.754/01) e promoveu uma licitação de cartas marcadas para transformar as concessionárias do STFC em fornecedoras tanto dos serviços de redes IP – de 290 mil computadores para 13 mil escolas públicas. A maracutaia acabou suspensa pela justiça graças à intervenção dos deputados Sérgio Miranda e Walter Pinheiro, por violação à lei de diretrizes orçamentárias (LDO).
Na segunda tentativa, que rolou em 2003, já no governo Lula, a autarquia inventou o bizarro ‘Serviço de Comunicações Digitais – SCD’, que serviria para interligar ‘algo’ a inexistentes ‘provedores de acesso a redes digitais de informação e à internet’ que, na realidade, eram apenas uma fachada para ocultar o ‘desaparecido’ serviço de troncos. Após ter causado muito bate-boca entre a Anatel e diversas entidades indignadas com a tentativa do governo em querer enganá-las, a proposta de criação do SCD foi descartada pelo Minicom em 2004.
Uma sangria de R$ 6 bilhões
Agora, parece que a banda podre perdeu o respeito de vez, ao passar por cima de dois acórdãos do TCU (1107/2003 e 2.148/2005), para tentar obter do presidente Lula a publicação de um decreto estabelecendo metas de universalização de backbones IP para as concessionárias de telefonia fixa, metas que, por lei, deveriam ser imputadas à concessionária do serviço de troncos.
Talvez a parte mais indigesta do novo cambalacho seja a alegação cretina de que ’55 mil escolas localizadas em áreas urbanas receberão, gratuitamente, acesso à internet por 18 anos’. Que ‘gratuidade’ é essa, prezado cara-pálida? Aquela simpática vovó da foto do telefone que era exibida no site da agência mandou avisar que, ao imputar ilegalmente metas de universalização de redes IP para as concessionárias de telefonia através de decreto, o governo dará a elas o direito de utilizarem as verbas do FUST para cobertura das parcelas de custos que não puderem ser recuperadas com a exploração eficiente dos serviços.
Como gratuidades costumam representar 100% de custo e 0% de retorno financeiro e Milton Friedman nos ensinou que ‘não existe almoço grátis’, certamente boa parte do custo dessa ‘caridade’ será coberta pelo chapéu alheio das tarifas públicas do STFC, via subsídio cruzado e o restante, é óbvio, sairá das tetas do FUST. Segundo a vovó, em tese, a sangria dos cofres públicos poderá chegar até 6 bilhões de reais, grana mais que suficiente para espalhar fibras ópticas para tudo que é canto e, de quebra, comprar um monte de equipamentos WiMAX, para serem instalados em todas as cidades nas quais o DSL não for economicamente viável.
‘Plano B’ para o monopólio
Resumo da ópera: após ter oligopolizado ilegalmente os serviços de redes IP nos grandes centros, o cartel das concessionárias do STFC agora quer estender os oligopólios até as pequenas e médias cidades, ‘deletando’ de vez a concorrência.
O lado irônico dessa encrenca é que tudo começou em 2004, quando a Anatel estava com o SCD pronto para enfiar pela goela da população e dependia apenas de a WorldCom vender o controle da Embratel para as três concessionárias locais do STFC. Com isso, a fraude do serviço de troncos estaria consumada e o cartel, a partir de então formado por apenas três empresas, assumiria o controle total sobre o SNT e todos nós estaríamos agora ferrados e mal-pagos, convivendo com os tradicionais oligopólios do STFC somados ao novo monopólio da comunicação de dados. Aí, veio o Carlos Slim (Telmex), comprou a Embratel e colocou água no chope das pobrezinhas, obrigando-as a partir para um ‘plano B’, representado pela atual maracutaia, na qual as redes da Eletronet e da Petrobras serão utilizadas como backbone, no lugar das redes IP da Embratel, para realizarem o sonho do ministro das Comunicações vitalício, de finalmente consolidar o ansiado monopólio dos serviços de comunicação de dados.
Grandes emoções
Surge então a pergunta que não quer calar: se quase todo mundo já sabe que as concessionárias de telefonia, incluindo a Embratel, estão utilizando ilegalmente as redes públicas do SNT para explorar serviços em regime privado, para que a Anatel e o Minicom insistem em agir feito uma dupla de estelionatários-sorvetões, bolando esses trambiques idiotas que só servem para desmoralizá-los ainda mais perante a população? A vovó do telefone está louca para saber qual é a mágica que impede o Ministério Público, a Corregedoria Geral da União e o Congresso Nacional de enxergar esse elefante fedorento estacionado na sala de estar do Minicom.
Duvido que a ministra Dilma Rousseff embarque nessa canoa furada, que poderá até expor o presidente Lula a um escândalo ainda pior do que o dos mensalões, já que muitas entidades representativas, tanto de usuários quanto de empresas de telecom, profundamente irritados com esta nova tentativa do governo em fazê-los de trouxas, pretendem pegar pesado em suas retaliações. Tem gente falando em crime de concussão e estelionato, assim como existem os que pretendem denunciar o ministro Hélio Costa ao Congresso por crime de responsabilidade e por aí vai. Em suma, se ao menos uma dessas entidades resolver procurar o Ministério Público para bater de frente contra o Minicom, certamente vai voar pena para todo lado porque vai ser difícil alguém explicar, de forma convincente, o motivo da Embratel não ter pleiteado a concessão do serviço de troncos até hoje.
Sei não, mas… 2008 promete começar com grandes emoções na área de telecom.
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Diretor de Pesquisa de Regulamentação da Associação Brasileira de Usuários de Acesso Rápido (ABUSAR)