Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma conversa com Rousseau

“O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer isto é meu e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.” Essa é a abertura da segunda parte do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, escrito em 1754 por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), indicando que a sociedade civil nasce sob o signo da desigualdade (e, portanto, da servidão), instituída e legitimada pela linguagem. É uma reflexão importante para compreender a relação entre comunicação e democracia, entre comunicação e política.

Seguindo o raciocínio do filósofo genebrino, a fundação da sociedade civil localiza-se, então, em um ato linguístico, evidenciando o campo político como o lugar da palavra que não se dissocia da ação. Na abertura da segunda parte do discurso, é a linguagem que reforça e incorpora a própria ação – no caso, de usurpação, que inaugura uma situação de desigualdade. Não basta o exercício do cercamento. É necessário legitimá-lo, reclamando para si, em público, a propriedade: “Isto é meu!”. Sem o necessário contradiscurso que denuncie a injustiça, o ato torna-se efetivo.

Segue Rousseau: “Quantos crimes, guerras e assassinatos […] teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém”.

Mas como ele mesmo diz, as coisas talvez já tenham chegado a um ponto “de não poderem mais durar como eram”. O que se seguiu foi a palavra não dita, deixando o caminho livre para a palavra ardilosa carregada de violência dissimulada. Jean Starobinski, importante intérprete da obra de Rousseau, observa que esse trecho do Discurso mostra “a palavra empregada em sua função social, mas para instituir a má socialização, a sociedade da desigualdade”.

A desigualdade está diretamente associada a uma fala monológica, autoritária, que não encontra o contradiscurso no espaço público e, por consequência, incorpora a condenação da própria liberdade. Em um exercício de interpretação dessas observações, é possível extrair daqui um alerta ao risco de concentração da voz para fundação e para manutenção do corpo político. Se poucos têm voz, as condições são de desigualdade e servidão. Mas se todos e todas têm garantido o espaço para que sua fala seja ouvida, as condições são de igualdade e liberdade.

Não cabe cautela, mas rigor e atenção

Por isso, causa apreensão a declaração recente do ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, quando ele defende “cautela” em ações contra aluguel de programação por emissoras, que estão na Justiça Federal (ver aqui). No final de março, uma decisão inédita da Justiça Federal havia mandado suspender as transmissões da Rádio Vida, do interior de São Paulo, por alugar sua programação para uma igreja evangélica. A juíza federal Flávia Serizawa e Silva também determinou o bloqueio dos bens dono da emissora, e do pastor líder da Comunidade Cristã Paz e Vida, que arrendava a rádio. Ainda cabe recurso da decisão. Importante observar, como pontuou a reportagem da Folha de S.Paulo, que se trata da primeira decisão judicial em uma ofensiva movida pelo Ministério Público Federal contra o mercado de aluguel de emissoras, que sobrevive nas brechas e omissões da legislação. Mas o Ministério Público considera alienação de concessão pública.

As rádios e TVs abertas são operadas no Brasil como concessão pública, o que significa que pertencem ao conjunto da sociedade brasileira. Os donos das emissoras recebem direito de exploração, não são proprietários do canal outorgado. Na prática, esses empresários agem como se fossem proprietários do canal. Isso não seria usurpação? É fundamental que isso seja objeto de rigoroso debate público, que as ações que fogem ao que determina a lei sejam devidamente questionadas.

Os casos de aluguel – total ou parcial – da programação devem ser, então, tratados com critério e com o rigor que a coisa pública exige. Ao pedir cautela, o ministro Berzoini pede para enfraquecer o contradiscurso necessário para apontar as contradições que firmam o reino da desigualdade na sociedade civil e comprometem a liberdade. Afinal, é permitida a exploração de uma concessão por alguém que não se submeteu à licitação e às regras públicas? Pode a operação de uma concessão ser regulamentada por um contrato privado? São questionamentos que pedem respostas.

O Executivo já deu mostras de falta de força política e também de falta de empenho na condução do debate sobre a reformulação da legislação das comunicações. O ministro Berzoini disse, ao tomar posse, que há compromisso por parte do governo de instituir o debate, mas não indica a institucionalização do debate. A presidenta Dilma Rousseff já disse claramente, em entrevista a blogueiros, que não há condições políticas de tratar desse assunto. O pedido de cautela no caso de desrespeito aos princípios da lei soa muito mais do que falta de força política ou empenho. Soa a subserviência.

Essa postura é um tanto mais grave quando se considera o cenário (inconstitucional) de concentração da propriedade de mídia no Brasil, onde prevalece o oligopólio na exploração da TV e o sistema de oligopólio no rádio (sobre o assunto, ver, neste Observatório, “Monopólio ou oligopólio? Contribuição ao debate”, de Venício A. de Lima e Bráulio Santos Rabelo). Essa situação favorece a imposição dos interesses dos empresários de mídia sobre o interesse coletivo, impedindo a realização do debate. As vozes dos donos criam o paradoxal argumento de obstruir o debate em nome da “liberdade de expressão”, quando, na verdade, defendem o privilégio de continuar a disseminar a sua verdade, corromper a opinião pública e deixar os donos da voz a verem navios.

Proibido proibir

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), já disse, mas repetiu durante sessão solene em homenagem do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa: “Nesta casa não admitiremos nenhuma forma de regulação da mídia, seja de conteúdo, seja econômica. Somos frontalmente contrários”.

Cunha é contrário ao debate. Presidente da casa onde deve prevalecer o livre debate de ideias decreta justamente o contrário: a ausência da fala democrática e a imposição de um discurso autoritário que impede qualquer manifestação da liberdade.

Ele está defendendo a cerca. A omissão do Executivo protege a cerca. O debate é a condição necessária para que todos e todas possam emitir sua opinião, arrancar a estaca e cobrir o fosso. Só assim será possível combater a desigualdade e construir a liberdade.

O Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações está em campanha para coletar assinaturas a um projeto de iniciativa popular que propõe nova legislação para a Comunicação Social Eletrônica (ver aqui). A entidade tem uma proposta para o debate. Precisa colher 1,3 milhão de assinaturas para que o projeto possa tramitar no Congresso Nacional, ampliando o debate. Quem assina o projeto concorda em discutir o assunto. Pode ser um bom caminho para principiar a conversa. Quem continuará defendendo a cerca?

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Ana Paola Amorim é professora do curso de Jornalismo da Universidade FUMEC, doutora em Ciência Política pela UFMG e pesquisadora do Grupo de Pesquisa CERBRAS (Centro de Estudos Republicanos Brasileiros), sediado no Departamento de Ciência Política da UFMG. É coautora, com Juarez Guimarães, de A corrupção da opinião pública – Uma defesa republicana da liberdade de expressão, Boitempo, 2013