Esse referendo vem fora de hora. Trocando corrupção por violência. Tirando, das vistas do povo, as CPIs e suas relações suspeitosas. Garantindo esquecimento a falsas vestais que a indignação nacional gostaria de ver processados e punidos exemplarmente.
Vem fora de preço. Que em país de pobreza endêmica, como a nossa, torrar quase 1 bilhão de reais assim é quase um crime. Em outubro do próximo ano vamos ter eleição. Bastaria acrescentar, na máquina de votar, essa pergunta de agora. Só para lembrar, o que vamos decidir é a manutenção (ou não) de um artigo (35) da Lei 10.826. Uma Lei de 2003. Já esperamos dois anos. Um a mais não faria grande diferença.
E vem fora de propósito. Ninguém é contra consultas populares. Elas são fundamentais, para a democracia. E são cada vez mais comuns, em países já culturalmente maduros. A última na Austrália, por exemplo, decidiu a idade mínima do serviço militar. Na Suíça, foi o horário de fechar portas de hotéis, à noite.
Se é para fazer consultas populares, então deveríamos começar discutindo questões mais relevantes. Por exemplo, se é decente o salário que pagamos a nossos professores. Se é justo que desempregados continuem purgando pecados que não são seus, em constrangedoras filas de hospitais públicos. Se continuaremos aceitando, passivamente, a desnacionalização de nossas riquezas. Se nos será dado interferir na definição de políticas públicas, e responsabilizar governantes por abuso ou desvio de poder.
Segurança privada
Grave, também, é que esse debate se revela sobretudo desinformado. Vamos decidir sobre armas legalmente registradas. Apenas isso. O governo sabe quantas são, posto que as registra. Mas não divulga o número. Essa omissão inconcebível, imperdoável, escandalosa, ultrapassa todos os limites da ética.
O que temos, nas televisões, são só estatísticas falseadas – e sem importância, para o referendo. Diz-se que seriam 15 (ou 17, ou 20) milhões de armas ilícitas. Sem que se revele quem coletou esse número, ou como se pode fazer um recenseamento assim. E mesmo sabendo que o referendo nada decidirá sobre elas. Enquanto a quantidade das armas lícitas, daquelas que o governo sabe exatamente quantas são, aquelas a que se refere esse referendo, permanece um mistério.
Não se diz já estar revogada a lei antiga, que permitia a qualquer um adquirir armas. Apesar disso, continuam as referências ao uso de armas em incidentes de trânsito, ou bares, ou rixas – como se pudessem continuar a ser compradas, como antes. Só propaganda enganosa. Sendo certo que, em (praticamente) todos esses casos, são invariavelmente usadas armas ilícitas. E tudo continuará assim, qualquer que seja o resultado do referendo.
Também não se diz que, hoje, para poder o cidadão ter em casa uma arma, é necessário declarar sua ‘efetiva necessidade’, ter ‘comprovação de idoneidade’, ‘não estar respondendo a inquérito’, ‘ter ocupação licita’, ‘capacidade técnica e aptidão psicológica para seu manuseio’. Com ‘certificado’ expedido pela Polícia Federal – e depois de autorização do Sinarm, do Ministério da Justiça.
Nem se diz que essa arma, legalmente adquirida, só pode ficar no ‘interior da residência’. Ou que já é ‘proibido o porte de arma’ (salvo em casos especiais). De tudo resultando que em casas de praia, ou propriedades no interior, ou residências urbanas, estarão protegidos apenas os que tiverem rottweilers. Ou puderem pagar seguranças privadas. Os com posses. Sempre eles. O referendo tem também esse corte social perverso.
Sem alegria
O cenário está montado para uma guerra santa. De um lado, a mistura esquisita de homens públicos em busca de notoriedade e gente de boa vontade – aqueles que, de coração, querem um ‘basta’ à violência. Usando argumentos que não têm a ver com o referendo. A esses últimos se diga, usando palavras de Cherteston, que ‘o mais terrível do erro é que ele tem heróis sinceros’.
Do outro lado, para a imprensa, estaria a ‘bancada da bala’. Todos comprados pela Taurus. Mas não são só estes, senhores. Há igualmente, neste lado, os que também não aceitam essa violência que nos degreda. Estou à vontade para falar disso. Não sei atirar. Não tenho armas. Nem pretendo ter.
Em resumo, e depois de bem refletir, apenas reconheço ser insensato recriminar quem sinta necessidade de ter em casa uma arma, para segurança sua ou de sua família. Ao menos enquanto nossa polícia não conseguir produzir segurança minimamente eficiente. Por isso votarei ‘não’. Sem alegria. Mas com a consciência tranqüila.
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Advogado, Recife (PE)