Domingo, 23 de março de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1330

EUA: o perigo do totalitarismo

(Foto: Reprodução de vídeo/YouTube U.S. Department of State)

Qual o verdadeiro objetivo dos cortes nas pesquisas e instituições científicas dos Estados Unidos, pelo presidente e seu auxiliar direto Elon Musk? O que se pretende com o corte nas ajudas do governo às universidades e com os controles de professores e alunos, antes não existentes?

A imprensa europeia ainda parece atônita diante das notícias trazidas por professores desejosos de vir ensinar na Europa, contrários ao governo Trump ou prestes a serem demitidos pelas chamadas medidas econômicas.

Difícil de responder, mesmo porque o plano comercial de taxar pesadamente as importações equivale a provocar reações capazes de aumentar a inflação nos EUA. A desativação ou diminuição das atividades de setores de ministérios, de ajudas a países estrangeiros, como as da USAID, é feita dentro de um plano bem programado ou com o objetivo de desativar as principais atividades sociais do Estado?

Alguma coisa parecida com aquilo posto em execução na Argentina pelo presidente Milei, elogiado pelos grandes grupos econômicos e bem recebido por economistas e patrões no Fórum Econômico de Davos?

Ou já se trata de se colocar em prática ou testar medidas destinadas a se criar um mundo totalmente diferente, controlado com a utilização de plataformas sociais e inteligência artificial? Uma versão atual e mais sofisticada do 1984 de George Orwell, um totalitarismo utilizando as câmeras de vídeo vigilância. O sistema de controle e vigilância de toda população, imaginado pelo escritor, não é mais ficção e já pode ser instalado em todas as residências, ruas e locais coletivos.

Nos nossos dias, existem diversos países com vontade de controlar a formação de pensamento do seu povo. Reeditando um procedimento mais comum na Idade Média, alguns países utilizam a censura, felizmente sem fogueiras. E, embora possa parecer surpreendente, os Estados Unidos, um dos países nos quais mais se fala atualmente em exercício da liberdade de expressão, é um dos maiores utilizadores da censura.
O jornal suíço Le Temps dedicou duas páginas da sua edição de fim de semana para destacar a existência de mais de 4 mil livros censurados nas bibliotecas e escolas estadunidenses e pergunta: “qual será a sequência dessa vaga liberticida?”

Entre os livros censurados estão O diário de Anne Frank, 1984, de George Orwell, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

Essa realidade foi mostrada no documentário Os Bibliotecários, de Kim A. Snyder, exibido no festival de cinema independente de Sundance, em janeiro. “Isso nunca se viu, nem na época do macartismo “, se diz no documentário, mesmo se a Constituição norte-americana garante a liberdade de expressão e a liberdade acadêmica.

Mas não é tudo e não vem só de Trump, mas dos fundamentalistas que o apoiam desde o primeiro mandato. Nos dois últimos anos, houve mais 10 mil pedidos processuais de censura de livros, além de álbuns e manuais escolares tratando do período da escravidão e da luta pela liberdade e direitos cívicos dos afro-americanos. Basta uma frase ou uma imagem para o livro ser catalogado como obsceno ou pornográfico pelas associações e grupos de pressão de fundo religioso nacionalista cristão.

O jornalista Jean-Jacques Roth afirma não serem só livros, mas também palavras e expressões proibidas pelo mundo trumpista numa ofensiva lançada contra a cultura, contra a ciência e contra a espinha dorsal do racionalismo moderno. Desde o primeiro mandato de Trump eram proscritos nos Centers for Disease Control os termos “feto”, “diversidade”, “transgênero”, “baseados na ciência” e “apoiados por provas”.

Desde o retorno de Trump uma série de palavras ou expressões estão proibidas, como “designado homem ao nascer”, “identidade de gênero”, “LGBT”, “pessoas grávida”. Existe também uma relação de palavras ou expressões a evitar como “diversidade”, “justiça social”, “raça e etnia”, “discriminação”, “racismo”. Trata-se de uma guerra de purificação léxica destinada a desqualificar tudo quanto se relacione com a ideologia progressista e com os conceitos das ciências políticas e sociais. De acordo com Jean-Jacques Roth, o objetivo é se criar um mundo onde o real não se relacione com a razão, mas à vontade do poder dominante, “um mundo no qual não se procura a verdade, mas no qual se decreta o que deve ser verdade. Isso tem um nome: totalitarismo”.

Para se ir mais a fundo:
https://www.letemps.ch/culture/livres/censure-de-livres-aux-etats-unis-quand-la-peur-s-abat-sur-les-bibliotheques-et-les-ecoles?srsltid=AfmBOopHnsih-f56v_-9pbUkbraaMhUm3u2VW5bWn-elYNR5OPAUTd9d 

https://www.pressreader.com/switzerland/le-temps/20250318/281548001672633?srsltid=AfmBOoo0acdXxJcKGQQlcpJOOa5oWLavjkD8WyTodRN7kmyO3v1USKcq

https://www.letemps.ch/suisse/des-cerveaux-americains-frappent-a-la-porte-de-l-epfl?srsltid=AfmBOoolt-BDvL1EPnH3IzIktPnM_D-Sf0awVK8zy7U5bSzvzHk4ee3X

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.