Alguns dias depois da fuga do ditador sírio Bashar al-Assad para a Rússia e tomada de Damasco sem qualquer resistência, a imprensa se pergunta como o chefe do grupo HTS, Abu Mohammad al-Jolani, irá governar a Síria. A primeira impressão é a de uma transição pacífica com o novo primeiro-ministro já nomeado e há declarações de que serão respeitados os direitos de todas as comunidades. Parecem afastadas tentativas de islamitas extremistas tomarem o poder e de se criar um clima de guerra civil com um desmembramento da Síria. Tudo foi muito rápido, em apenas 12 dias tudo mudou. Vale recapitular.
O chefe do Hamas, Yahya Sinwar, ao atacar Israel no dia 7 de outubro de 2023, sem autorização do Irã, estava certo de ter dado um grande golpe nos israelenses, num momento crítico em que o primeiro-ministro Netanyahu era alvo de intensas manifestações populares por tentar evitar um processo por corrupção pela Suprema Corte. O ataque tinha também por objetivo evitar um acordo de aproximação entre Israel e a Arábia Saudita.
Foi uma péssima avaliação: o ataque provocou a reação de Israel e mexeu com todas as engrenagens até ali aparentemente estáveis na região, com consequências totalmente opostas aos objetivos visados. Tanto Yahya Sinwar como toda direção do Hamas foram destruídos junto com a Faixa de Gaza, enquanto o Hezbollah perdeu a maior parte de sua força com a morte de Hassan Nasrallah e com a perda de cerca de 80% de seus mísseis, causados por Israel. A seguir, o Irã ficou duplamente enfraquecido com os ataques de Israel, a ponto de não poder mais sustentar a ditadura de Bashar al-Assad, deixando aberto o caminho para a deposição do ditador pelos rebeldes do HTS, Hayat Tahrir al-Sham, Organização pela Libertação do Levante (o Levante reúne o Líbano, a Síria, a Jordânia, Israel e o território palestino).
E não só – a rápida queda do ditador al-Assad, sem qualquer resistência e também sem intervenção da Rússia mostra Vladimir Putin igualmente enfraquecido a um mês da posse de Donald Trump, decidido a forçar um acordo de paz entre Ucrânia e Rússia. Mais alguma consequência do ato terrorista de 7 de outubro?
Sim, a revelação, por toda imprensa, da ditadura sanguinária mantida por Bashar al-Assad e seu pai durante 52 anos poderá levar à descoberta de outra ditadura, a teocracia islâmica do Irã, cujo ex-presidente Ibrahim Raisi era chamado de açougueiro pela violência com que agia contra os adversários do regime do aiatolá Khamenei e contra jovens mulheres revoltadas com a morte da jovem curda Mahsa Amini, por não ter posto corretamente o véu sobre a cabeça, exigido pela religião.
Ibrahim Raisi, segundo denúncias da Anistia Internacional, foi responsável por milhares de sentenças de morte por enforcamento. Correm rumores de que a morte de Raisi não teria sido acidental num helicóptero velho demais para continuar sendo usado, mas consequência de dissensos dentro do governo, tendo em vista a inflação e as dificuldades econômicas com que vive a população. Essa situação poderá levar o Irã a uma crise na sucessão de Khamenei ou ser apressada essa crise com a atual queda do regime opressivo de al-Assad. Em todo caso, a Síria e o Irã com suas prisões e sistema repressivo deixam de ser boas referências para o movimento Sul Global ou pós-colonialismo.
Quem é Mohammed al-Jolani?
Ahmed al-Chara, conhecido como Mohammed al-Jolani, nasceu em Ryad tem 46 anos e é filho de um economista e engenheiro politicamente de esquerda. Estudou em Damasco, mas, em 2003, abandonou a universidade para, durante a guerra do Iraque, aderir a um grupo islamita que se integrou na Al-Qaeda, no Iraque. Em 2006, foi ao Líbano e, ao retornar ao Iraque foi preso pelos norte-americanos e levado para a prisão de Abou Ghraib. Libertado depois de alguns anos, integrou o Estado islâmico do Iraque. Em 2011, criou o grupo Front al-Nosra para combater Bashar el-Assad. Em 2013, foi designado como terrorista pelos EUA e sua cabeça foi posta a prêmio por 10 milhões de dólares.
Em 2015, numa entrevista para a TV Al Jazeera do Qatar, al-Jolani diz não ter intenção de atacar o Ocidente e que sua prioridade é o regime sírio de al-Assad. Nem quer atacar os alauítas, embora sejam considerados heréticos pelo Islã. Em 2016, rompe com o movimento al-Qaeda e, no ano seguinte, cria o HTS. É de 2018 sua declaração: “estamos dispostos a nos reconciliar com todo mundo…”. A seguir se distancia do jihadismo, numa entrevista ao jornalista francês Wassim Nasr, considerando ter sido um erro e um projeto insensato.
A situação atual é a de expectativa. Se forem confirmadas na prática as declarações de Mohammed al-Jolani, haverá grandes mudanças positivas na região.
Algumas referências –
Gilles Kepel – https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&q=youtube+gilles+kepel+et+la+Sirie#fpstate=ive&vld=cid:8a114d58,vid:ov8meyp6hLc,st:0
Le Temps – https://www.letemps.ch/opinions/en-syrie-la-fin-d-une-abomination?srsltid=AfmBOorKGhsPW_m0Y52baqggtfj0EDegHExUYdrhcZlqjAhZYwBcLXKG
Le Temps – https://www.letemps.ch/opinions/editoriaux/la-crainte-de-voir-l-iran-accule-developper-l-arme-nucleaire?srsltid=AfmBOoq6CJbYHxmBFsdT6xeY2zGBZ5Ai88aJE82-iOVyiZL5rVpW3WLM
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.