Este não é um artigo sobre ortografia. Mas pode ser uma reflexão sobre neurolinguística aplicada; a respeito de como a mídia corporativa manipula e tange a opinião dita “pública” usando vasto arsenal de truques linguísticos e piruetas lógicas.
No caso em tela, tomado para ilustrar esta narrativa, à guisa de notícia na área de segurança computacional. A narrativa começa com uma matéria do jornal The Washington Post intitulada “Russian hacker group exploits satellites to steal data, hide tracks”.
A notícia é engraçada já a partir do título. Se os rastros são escondidos (hide tracks), então não seria possível verificar quem são os autores; mas o Washington Post sabe quem são: um grupo de hackers russos (russian hacker group), claro! O jornal deve ter lá suas fontes privilegiadas e confiáveis, então nem pense que poderia ser um hacker group em Langley, porque aí sim, isso seria teoria da conspiração!
A palavra “conspirar” vem do latim, onde quer dizer “respirar juntos.” Sobre isso surgem, como figura de linguagem, teorias e teorias. Existem as tolas e as não tolas, as despistantes e as investigativas, as especulativas e as verificáveis, etc. O exercício de classificá-las e reclassificá-las, em meio ao nosso desafio de entender o mundo, vejo como útil à manutenção da própria inteligência. Já que a verdade oficial nem sempre é inteligente, nem sempre passa no teste da navalha de Occam.
Após escrever “Langley” e “teoria da conspiração” na mesma frase, cabe lembrar da teoria metaconspiratória originária (que não deve ser confundida com uma teoria metaconspiratória qualquer). Esta, podemos chamar também de teoria conspiratória niilista sobre teorias conspiratórias: Ela dogmatiza que toda teoria conspiratória é apenas alucinatória ou paranoica — exceto, é claro, ela mesma! Ela substitui aquele exercício intelectual pelo exercício emocional da prática de injúrias, preferencialmente contra mensageiros de teorias.
É uma teoria ingênua e preguiçosa, às vezes covarde, mas perfeitamente útil para manter seus adeptos dóceis ao que podemos chamar de “ditadura do mainstream” — em certos contextos também conhecida como a do politicamente correto. Não é à toa, portanto, que essa teoria metaconspiratória é promovida no mainstream! Mas o Washington Post é um respeitável jornal, você diria, o que nos leva então ao restante da narrativa.
Ursos polares
A notícia em tela foi discutida numa lista sobre segurança na informática, onde a atribuição de autoria desse tipo de “roubo” foi questionada como açodada. Alguém então retrucou que o relatório no qual se baseou o Washington Post foi produzido pela Kaspersky, uma grande empresa russa de segurança digital, que inclusive já publicou vários relatórios similares. Para concluir, o comentarista gracejou: diante da complexidade em se atribuir autoria no domínio cibernético, se não foram os russos, então foram ursos polares.
Esse gracejo mostra como funciona a teoria metaconspiratória na prática. Ali, ridicularizando-se o senso crítico manifesto na forma natural de se investigar crimes, que o direito romano resumiu na expressão “cui bono?” Washington Post citando a Kaspersky para incriminar russos? Isso convida o senso crítico a ir além da manchete pautada. Então, nos detalhes da matéria, os tais truques se revelam. E o leitor que prosseguir poderá examinar alguns desses detalhes:
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O instrumento usado para os ataques citados no The Whasington Post é um software que a Kaspersky chama de “Turla”. Sobre esse software, o respectivo relatório da Kaspersky informa também contra quem ele tem sido mais usado:
“TOP TARGETED COUNTRIES: Top 10: France, Russia, Belarus, Romania, USA, Netherlands, Kazakhstan, Saudi Arabia, Iran, Poland. (from) 45 countries in total”.Ou seja, tanto países da Otan como da Organização para Cooperação de Xangai (SCO) ou SCO+ (inclui Irã) são alvos preferenciais; uma situação compatível, portanto, com operação comercial ou terceirizável, de atores autônomos ou independentes de controle governamental específico.
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A referencia à Kaspersky na matéria se restringe a uma entrevista por telefone com Stefan Tanase, pesquisador sênior da empresa. Sobre o grupo por trás do Turla, Tanese diz apenas que é formado por sophisticated Russian-speaking hackers.
De que eu me lembrasse, a última matéria parecida divulgada naquela lista de segurança digital, que foi publicada por outro respeitável jornal (o New York Times), atribuía a um grupo de “hacker russos” o roubo de mais de um bilhão de senhas. Como a quantidade de senhas roubadas me pareceu exagerada, fui aos detalhes e constatei que a única fonte de atribuição para essa “notícia” era um ucraniano que fala russo e está nos EUA ganhando dólares (na Hold security), cobrando para dizer se a senha de quem lhe paga está entre as “roubadas”.
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Para atribuição que associa o grupo do Turla ao governo russo — algo que poderia servir para justificar a manchete como prática jornalística honesta –, a fonte do Washington Post já é outra: Para isso foi ouvido um tal de Dmitri Alperovitch, que pelo nome podemos presumir que também fala russo mas, mais ainda, que fala também inglês, pois está nos EUA ganhando dólares como chefe de tecnologia da CrowdStrike, uma empresa de segurança digital na Califórnia.
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Imagine agora uma situação semelhante, porém, envolvendo outro idioma: se alguém automaticamente atribuísse a agências de três letras do governo dos EUA qualquer atividade nefária praticada por sofisticados hackers que escrevem em inglês. Seria considerado o quê? Externei minha dúvida, se seria considerado um urso polar ou alguém querendo promover a conspiração niilista que pinta todas as outras como alucinadas ou paranoicas.
De noite, todas as teorias são pardas
A discussão naquela lista prosseguiu, com o reconhecimento de que certas operações de ciber-espionagem vêm, de fato, sendo terceirizadas para grupos independentes. Mas o gracioso comentarista prosseguiu, agora opinando que, em última instância, quem não tem condições de contra-espionar fica mesmo dependente de atribuições que são mercadejadas. Seja pela Kaspersky, pela CrowdStrike ou por ursos polares.
Em última instância, o ponto principal ali me pareceu outro. Subjacente a debates como aquele, há sempre alguma ignorância implícita que facilita a prática reativa de se atacar qualquer crítica sobre explicações oficiais ou politicamente corretas. No caso em tela, por exemplo, ignorância de natureza geográfica e cultural, em tempos ruços de demonização oficial da Rússia e dos russos.
Geógrafos e linguistas estimam que o idioma russo é hoje falado por cerca de 260 milhões de pessoas, enquanto a população da Rússia é de aproximadamente 145 milhões. Existem portanto aproximadamente 115 milhões de pessoas no mundo que são fluentes no idioma russo e que não são nem cidadãos, nem residentes da federação russa, nem funcionários de suas instituições.
A questão a ser levada em conta aí é sobre o tipo de ignorância — seja ingênua ou proposital — que pode fazer vítimas inocentes em meticulosas operações psicológicas pro-hegemônicas. A ponto de levar pessoas inteligentes, até em ambientes intelectualmente refinados, a confundirem poliglotas ucranianos ou poloneses ou georgianos ou búlgaros ou húngaros ou kazaques ou do escambau, migrantes ou não, com ursos polares.
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Pedro Antonio Dourado de Rezende é matemático, professor de Ciência da Computação e Coordenador do Programa de Extensão em Criptografia e Segurança Computacional, na Universidade de Brasília. (www.cic.unb.br/docentes/pedro/sd.php)
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