Questionar o padrão dos elementos que tradicionalmente constituem e definem um Estado Democrático de Direito é um dos primeiros passos para se iniciar a discussão sobre o status vigente das democracias contemporâneas e das suas projeções para um futuro a ser instaurado definitivamente sob a influência da presença da tecnologia da informação e comunicação (TIC) nas relações sociais, políticas, culturais, jurídicas e econômicas.
O Estado Democrático de Direito representa um novo conceito revolucionário de transformação do status quo, ao ser formado da superação e da reunião entre o Estado Democrático e o Estado de Direito. Tem-se no século XXI a ascensão de uma “revolução” comandada, desta vez, por agentes tecnológicos globais que redimensionam os conceitos, as estruturas, as relações e os poderes decorrentes do Estado de Direito, seja ele democrático ou não. A própria concepção de democracia se expande diante desse frenesi revolucionário, dando origem às discussões sobre o controverso processo recorrentemente denominado “democracia digital”.
Neste caminhar, a relevância da problemática abordada manifesta-se na atualidade da temática, especialmente pela importância que a internet e as ferramentas digitais assumem no cenário social e refletem no futuro da democracia brasileira, visto que os novos rumos políticos estão convergindo para os ambientes tecnológico-virtuais, havendo necessidade de conscientização da sociedade quanto ao potencial desses espaços digitais de influenciar a administração do interesse público.
A realidade tecnológica vivenciada nos últimos anos é resultado dos impactos da Terceira Revolução Industrial ou da transição para a Quarta Revolução Industrial, termo cunhado por Klaus Schwab, em 2016, para definir o processo de revolução não apenas tecnológico, mas de fusão de novas descobertas tecnologias e a ocorrência de interconexões entre os campos físicos, digitais e biológicos. Nessa ótica, a Quarta Revolução Industrial não se restringe à mera disposição de aparelhos digitais, propondo uma ruptura social a partir da interação entre o físico e o digital, onde a tecnologia e digitalização seriam fatores centrais.
Euforicamente, propaga-se um novo palco de participação política aberto, plural e acessível, onde os espaços virtuais são considerados a nova ágora do século XXI. Quem não se lembra do entusiasmo de Gilberto Gil, expresso na canção Pela Internet (1997)? “Criar meu web site/Fazer minha homepage/Com quantos gigabytes/Se faz uma jangada/Um barco que veleje/Que veleje nesse infomar/Que aproveite a vazante da infomaré/Que leve um oriki do meu velho orixá/Ao porto de um disquete de um micro em Taipé/Um barco que veleje nesse infomar/Que aproveite a vazante da infomaré/Que leve meu e-mail até Calcutá/Depois de um hot-link/Num site de Helsinque/Para abastecer/Eu quero entrar na rede/Promover um debate/Juntar via Internet/Um grupo de tietes de Connecticut/De Connecticut acessar/O chefe da Macmilícia de Milão/Um hacker mafioso acaba de soltar/Um vírus pra atacar programas no Japão/Eu quero entrar na rede pra contactar/Os lares do Nepal, os bares do Gabão/Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular/Que lá na praça Onze tem um vídeopôquer para se jogar”.
O uso da internet no fortalecimento da democracia participativa no Brasil animou a liberdade de expressão das pessoas em escala significativa. Porém, precisamos melhorar a responsabilidade argumentativa da “aldeia global”, conforme termo cunhado por Marshall McLuhan (1911-1980). O mercado do capital simbólico teve suas cifras aumentadas extraordinariamente com a popularização da internet comercial e a maior oferta de computadores pessoais a partir da segunda metade da década de 1990. Estamos falando do capitalismo turbinado pela “infocracia”, na acepção formulada por Byung-Chul Han (2022).
O sensacionalismo inflacionado pela fake news vem, com todo ímpeto, bombardear a nossa atenção com escândalos, boatos, fofocas, intrigas, mentiras e imprecisões. Sem critério de qualidade e relevância, o espírito publicista do nosso tempo foi idiotizado pela fogueira das vaidades egocêntricas. O narcisismo afetado da humanidade plugada e antenada movimenta um tagalerismo cibernético insuportável, desvalorizando o princípio ético de falar bem, escutar melhor e fazer bonito. Alimentamos diversas mídias, porém com conteúdo simplório e precário saindo pelo ladrão.
Por suas características que fomentam a comunicação — inclusive direta, entre cidadãos e elite política — e pela quebra do polo de emissão, as diversas plataformas e ferramentas foram vistas como passíveis do fomento de uma ideia de democracia digital, transcendendo distâncias políticas e constituindo interações entre as mais diferentes esferas. Considerando O jornal e o livro (1859), A reforma pelo jornal (1859), Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) e Elogio da morte (1918), já era defendida “uma esfera pública conectada” pelos comunicólogos Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922).
Esse diferencial de vanguarda, portanto, vem sendo sublinhado muito antes da inovação empreendedora, creditada a Bill Gates/Microsoft, Steve Jobs (1955-2011)/Apple, Mark Zuckerberg/Facebook e Elon Musk/X (ex-Twitter). Enquanto os magnatas da informática comunicativa são tratados como “iluminados” e recebem uma fortuna indecorosa para promover dispositivos digitais e de interação a distância, os “ilustrados” são perseguidos pelo reinado tecnológico e econômico porque produzem razão e sensibilidade bem mais concretas. O saber da população, já fatiado pelas discriminações históricas de classe, raça e gênero, só é chamado pela internet para abastecer o inchado poder alienante. O fascismo autoritário se apropria da realidade virtual para continuar a sanha de vigiar e punir os produtores de conteúdo autêntico. São estes que nos sustentam na luta contra forças esmagadoras e produzem o verdadeiro agir comunicativo.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é membro da Academia Cruzeirense de Letras – ACL (Cruzeiro-DF). Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). Integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA/FALE/UFMG). Poeta, escritor, professor e pesquisador. Comunicador Social formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Jornalista e autor do livro Machado de Assis, crítico da imprensa (Outubro Edições, 2023), além de participante do Coletivo AVÁ desde 2018.