A recusa, na última quarta-feira, 06/04, da tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei 2630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, pode ter consequências objetivas no tratamento, pelo Estado brasileiro, de um fenômeno – a disseminação massiva de conteúdos de desinformação – que tem fragilizado cotidianamente a democracia no país.
Vale registrar, de início, que o processo legislativo compreende a sucessão de etapas e o regime de tramitação determina a ordem em que os projetos serão apreciados. Assim, a aprovação da urgência faz com que a matéria entre em discussão na sessão imediata, ocupando o primeiro lugar na Ordem do Dia (art. 157 do Regimento Interno da Câmara). Desse modo, ao não ser apreciado em regime de urgência, o PL 2630 segue sem indicação de quando será discutido e votado pela Câmara dos Deputados.
Mas por que precisamos de uma lei, como o PL 2630, para regular as plataformas digitais e estabelecer mecanismos sobre a circulação de desinformação? Esta é uma pergunta que envolve diversos pontos. Fixaremos, aqui, alguns.
1) Regulação não é Censura. Como defendido por Stroppa (2022), no livro Plataformas digitais e moderação de conteúdos: por uma regulação democrática, é necessário compreender que a Constituição Federal de 1988 fixa como ponto de partida a exigência de um modelo de regulação que vá além da autorregulação promovida pelas plataformas digitais. Em outras palavras, o Brasil vincula-se à determinação de uma regulação jurídica estatal, não se conformando com a já praticada pelas plataformas (auto regulação), que vêm decidindo, a partir de seus ‘termos de uso e suas diretrizes”, o que circula e o que não circula, sem transparência e obediência a parâmetros de devido processo legal.
2) Ao regular pontos que impactam a moderação de conteúdos feita pelas plataformas digitais que tenham mais de 10 milhões de usuários registrados e que exerçam atividade de forma organizada, o Estado Brasileiro busca atribuir consequências jurídicas às atitudes por elas tomadas em um contexto de posições extremamente assimétricas (usuários x plataformas) e, em decorrência, permitir o “empoderamento” dos usuários que passam a ter, de forma explícita, direitos que são incompatíveis com a opacidade atual das filtragens, bloqueios, impulsionamentos, remoções que vêm sendo feitas pelas plataformas que adotam a moderação de conteúdos.
3) Ao impor que as plataformas a) vedem o funcionamento de contas automatizadas não identificadas como tal ao usuário ou aos provedores de redes sociais e serviços de mensageria instantânea; b) identifiquem todos os conteúdos impulsionados e publicitários cuja distribuição tenha sido realizada mediante pagamento ao provedor, bem como os conteúdos referentes às contas automatizadas; e c) confiram acesso e tratamento não discriminatório a usuários, o PL 2630 não interfere nos conteúdos. O que está sendo proposto é o estabelecimento de determinações jurídicas que devem ser implementadas na arquitetura tecnológica das plataformas para afastar o que é abusivo no exercício atual do poder que assumiram na configuração do espaço público.
4) O argumento da possibilidade de escolha é falacioso e o caráter voluntário do consentimento dos usuários aos termos de uso é fragilizado. As indicações de que os usuários têm liberdade para “não aceitarem os termos e condições de uso” e utilizarem outra plataforma, torna-se falacioso diante do gigantismo e da importância que as grandes plataformas digitais, como Google e o Facebook, exercem. Se não “estivermos nestas plataformas” para onde iremos? Como nos fazermos ouvidos e visíveis neste ambiente digital se não nos submetermos a estas plataformas?
Como expresso por Wolfgang Hoffmann-Riem, no texto Autorregulação, autorregulamentação e autorregulamentação regulamentada no contexto digital, as eventuais alternativas apresentadas às plataformas que dominam o espaço digital ficam muito aquém na amplitude e na qualidade das experiências promovidas pelas empresas dominantes no mercado e, consequentemente, as pessoas se isolariam comunicacionalmente se não usassem esses serviços.
5) A liberdade de expressão, de informação e de comunicação são direitos fundamentais que exigem que o Estado fixe parâmetros a serem observados pelas plataformas que, devido ao seu porte, abrangência, tratamento gigante de dados pessoais e captura de audiência, se tornaram verdadeiros espaços públicos onde as pessoas acessam às notícias, acontecimentos e formam a sua opinião.
Feitas estas considerações, compreendemos que a edição de uma legislação como o PL 2630/20 constitui uma resposta do Estado Democrático Brasileiro para assegurar os direitos fundamentais da população, que são essenciais para a segurança jurídica do país e para o regime democrático.
Ao mesmo tempo em que se deve seguir reivindicando a votação do PL 2630, é preciso ampliar a discussão sobre a relação entre cidadania e comunicação, partindo do princípio de que os usuários e usuárias das plataformas digitais são titulares de direitos fundamentais e não meros consumidores do que vem sendo a eles ofertados pelas plataformas que dominam o espaço digital em todo o mundo.