Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um vice de meias medidas

(Foto: Sergio Lima/AFP)

Seria falta de assunto ou atração pelo supérfluo a publicação pela imprensa de fotos, que viralizaram nas redes sociais, seguidas de comentários anódinos e reflexões diversas sobre tendências da moda masculina na televisão, mostrando as inusitadas meias usadas pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, logo depois das eleições?

Todo mundo sabia o significado do L feito com os dedos das mãos durante a campanha eleitoral. Mas, muitos se perguntavam, o que queriam dizer os pés de Alckmin, vestidos com meias pretas mostrando estampas de bolinhas ou poás brancas? Ninguém se interessou pelos sapatos mocassim de couro preto, imagina-se de luxo. O enfoque era o par de meias, como se elas tivessem uma linguagem muda cifrada, exigindo interpretação.

Teria sido mais um sinal da volubilidade de nossa imprensa, acusada de ter sempre incentivado o surgimento de mitos, como foi no passado Jânio, o homem da vassoura e suas forças ocultas e, nos nossos dias, Bolsonaro, o homem-mito do palavreado chulo e da fraude nas urnas, empunhando uma metralhadora? Ou existe em nós mesmos, leitores e eleitores, essa tendência para correr atrás da novidade, do que sai do comum, mesmo que seja por um tempo fugaz? Se não houvesse um conteúdo político, o culto a Neymar substituído pelo de Richarlison, talvez efêmero, seria um exemplo.

Mas voltemos às extremidades inferiores do vice-presidente. Teriam sido essas meias alckmistas as primeiras a despertarem o interesse da imprensa? Não, uma rápida busca nos mostra haver mesmo livros sobre a “importância” das meias, esses acessórios guardados discretamente nas gavetas do guarda-roupas, dentro dos sapatos após uso ou espalhadas pelo quarto de gente desordenada. O mais recente é em francês e tem um título importante, “Pequena Filosofia sobre as Meias”, escrito por um sociólogo Jean Claude Kaufmann, um bom presente de Natal que as esposas orgulhosas dos pés de seu marido poderiam lhe oferecer, junto com um par de meias, é claro!

Bem antes das fotos das meias de Alckmin, há quatro anos, os jornais estrangeiros a começar pelos canadenses, publicaram os pés do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, com meias azuis nas quais nadavam discretos patinhos amarelos. A foto dos pés de Trudeau dentro de sapatos pretos de laços tinha como fundo um cartaz azul do Fórum Econômico de Davos, na Suíça, no qual se lia o tema “Construir um futuro comum num mundo dividido”. Haveria uma mensagem subliminar nas meias do dirigente canadense? Neste caso, quem seriam os patos?

Outro político cujas meias chamavam atenção, foi o francês de origem armênia, Édouard Balladur, nomeado primeiro-ministro, de 1993 até 1995, por François Mitterrand, numa espécie de coabitação da esquerda com a direita, depois da vitória da direita nas legislativas francesas. Aqui uma coincidência: Balladur era um homem de direita, assim como Geraldo Alckmin, no governo socialista de Mitterrand.

Porém, mesmo sendo de direita, Balladur usava meias vermelhas, símbolo gritante de uma esquerda mais radical. Ora, os comunistas e socialistas não têm a exclusividade do vermelho. Nisso, o gado bolsonarista também se engana ao clamar “nossa pátria nunca será vermelha!”, porque a cor dos republicanos norte-americanos, apoiadores do detestável Donald Trump, é vermelha.

Allan dos Santos, refugiado ilegal nos Estados Unidos agora sem passaporte brasileiro, famoso entre os evangélicos bolsonaristas e execrado pelos antigolpistas por ter xingado ou incitado xingamentos contra ministros do STF nos EUA, terá de adotar o vermelho republicano, se conseguir a nacionalidade de Trump. Bom, isso não implicará num uso de meias vermelhas. Quem usa obrigatórias meias longas vermelhas dos pés ao alto das pernas são os cardeais do Vaticano, meias consideradas aristocráticas.

E o povo, que meias usa?  Durante muito tempo, usavam meias brancas, hoje consideradas o suprassumo do mau gosto. Porém nestes últimos anos, usar meias nos pés, sejam brancas, pretas com bolinhas brancas, azuis com patinhos ou vermelhas virou coisa de rico, mesmo porque havaianas dispensam meias.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.