Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A ira contra os jornalistas: pistoleiros na fronteira e caluniadores em Brasília

(Foto: Agência Senado)

Publicado originalmente no blog Histórias Mal Contadas

Desde que o mundo é mundo, por diferentes motivos, em todos os cantos do planeta fazer jornalismo sempre foi perigoso. Mas o que está acontecendo hoje é inédito. Juntou-se aos perigos habituais da profissão, que inclui episódios como a execução por pistoleiros do repórter Léo Veras, em Ponta Porã (MS), na fronteira com o Paraguai, uma máquina de calúnias contra os jornalistas, cuja vítima mais recente foi a repórter da Folha Patricia Campos Mello, difamada por Hans Nascimento durante depoimento dele na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News. Essa máquina vem sendo montada e aperfeiçoada há uma década por profissionais altamente qualificados nas ciências de comportamento, texto, imagens e sons, e na arte da manipulação da verdade. Sua primeira aparição pública foi em 2016, durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos, que deram vitória a Donald Trump. No Brasil, foi usada na eleição de Jair Bolsonaro (sem partido, RJ) para presidente da República e atualmente continua funcionando a todo vapor.

A diferença entre a maneira antiga de se livrar de jornalistas e a atual é que antes era mais fácil chegar a quem tinha contratado os pistoleiros. Hoje, é bem mais difícil alcançar quem apertou o botão do computador que está espalhando as calúnias. Eu sou um velho repórter estradeiro, 69 anos, trinta e poucos nas redações, e conheço os sertões do Brasil como a palma da minha mão. Desde 1983 até os dias atuais, tenho por rotina andar pelas fronteiras do Paraguai de dois em dois anos. Crime organizado nas fronteiras é um dos meu focos profissionais. O Léo Veras trabalhava fazendo reportagens para seu site, Porã News, em Capitán Bado, cidade paraguaia separada por uma rua de Coronel Sapucaia (MS), 170 quilômetros ao norte do município paraguaio de Juan Pedro Caballero, que, por sua vez, separa-se por uma avenida da brasileira Ponta Porã (MS).

Essa é uma das zonas de fronteira mais violentas da América do Sul. Em Bado, em 2001, o traficante carioca Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, refugiou-se na fazenda de João Morel, chefe local do tráfico de drogas. Morel e sua família foram mortos por Beira-Mar, que montou na região a estrutura para o Comando Vermelho (CV), nascido nas favelas do Rio de Janeiro. Uma boa parte do meu livro País-Bandido (2003) foi feita ali. A melhor maneira de se trabalhar nessa região é ser invisível: chega, faz as entrevistas e some. O Léo não podia ser invisível, ele morava ali. A última vez que cruzei com ele foi durante uma cobertura, em 2010. Na ocasião, o senador paraguaio Roberto Acevedo tinha caído em uma tocaia em uma das ruas de Pedro Juan Caballero. Ele sobreviveu, mas dois de seus seguranças morreram. O ataque aconteceu porque Acevedo contrariou interesses do Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, que se estabeleceu na região logo depois do CV. Hoje, além das duas facções criminosas, opera na região o Exército do Povo Paraguaio (EPP), uma quadrilha travestida de movimento político que ganha dinheiro sequestrando brasiguaios – agricultores brasileiros que migraram para as terras paraguaias. Na ocasião, os então presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), e do Paraguai, Fernando Lugo, se encontraram na avenida que divide Caballero de Porã e depois tiveram uma longa reunião sobre a violência na região.

Não é só cocaína que passa por aquele pedaço de fronteira: maconha, drogas sintéticas, cigarros falsificados, armas, munição e material de informática. Quem contratou os pistoleiros que deram doze tiros e mataram o Léo? Logo o seu nome estará circulando na região, porque é tradição de quem manda matar usar a morte como um aviso para mostrar o que acontece com aqueles que se intrometem nos seus negócios. Quem contratou Hans para caluniar a repórter Patricia Campos Mello na CPI das Fake News? A repórter fez matéria sobre ele durante a campanha eleitoral de Bolsonaro. Na época, ele tinha uma disputa trabalhista com a Yacows, uma agência de disparos de mensagens em massa por WhatsApp – sobre o assunto, há um farto material disponível na internet. Esse tipo de agência é uma engrenagem na máquina de calúnias. Em seu depoimento, ele disse que a repórter sugeriu trocar sexo por informações. Há uma pilha de fatos mostrando que isso não aconteceu.

Soubemos que alguém montou essa história para o Hans. Não sabemos quem. Mas sabemos quem avalizou como se a história fosse verdade. Um deles foi o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que escreveu nas redes o seguinte: “Eu não duvido que a senhora Patricia Campos Mello, jornalista da Folha, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o senhor Hans, em troca de informações para tentar prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro. Ou seja, é o que a Dilma Rousseff falava: fazer o diabo pelo poder”. É assim que funciona. A calúnia é validada por alguém e passa a circular como se verdade fosse. Outra que foi vítima da máquina de calúnias foi a jornalista Thaís Oyama, comentarista da Jovem Pan (JP), prestigiada emissora de rádio de São Paulo. Ela escreveu o livro Tormenta – O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos. Eu li Tormenta, é leitura obrigatória para quem quer entender o que acontece entre as quatro paredes do governo. É um relato de fatos muito bem consolidados, o que revela uma apuração muito rígida. A respeito do livro, o presidente Bolsonaro disse: “A nossa imprensa tem medo da verdade. Deturpam o tempo todo. Mentem descaradamente. Trabalham contra a democracia, como o livro dessa japonesa, que eu nem sei o que faz no Brasil”.

“Japonesa” foi usado de maneira preconceituosa pelo presidente. Aqui, quero chamar a atenção dos meus colegas, principalmente os mais jovens. Se pegarmos as informações do Tormenta e cruzarmos com as publicadas no livro do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, Nada menos que tudo, e com as denúncias que o site The Intercept Brasil vem publicando sobre a força-tarefa da Operação Lava Jato, temos um caminho seguro para entender como Bolsonaro ganhou as eleições, se mantém no poder e o que irá acontecer no futuro. Cruzar informações é uma velha técnica de investigação que nunca cai de moda. A calúnia é tão mortal contra um jornalista como a bala disparada por um pistoleiro. Não foi por outro motivo que investiram tanto tempo e dinheiro na montagem da máquina de manipular os fatos. É simples assim.

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Carlos Wagner é jornalista.