Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Discurso de ódio não pode ser confundido com opinião

Ilustração: Armandinho

Não é de hoje que a cobertura de discursos de ódio representa um grande desafio para o jornalismo. Se conduzida de maneira responsável, é possível contribuir não só para o combate de ideias intolerantes como também sensibilizar e educar o público, mas se a mídia não tem consciência de sua responsabilidade as notícias podem amplificar as vozes e os pontos de vista distorcidos de quem propaga discursos discriminatórios e excludentes.

Problemático também é quando os próprios comunicadores utilizam o papel, imagem e posição que ocupam para perpetuar mensagens misóginas, racistas, xenofóbicas, homofóbicas e transfóbicas, espetacularizando discursos de violência contra diversos grupo sociais. Os exemplos não são poucos e precisam ser combatidos, ainda mais quando estamos em meio a um contexto sociopolítico mundial que favorece o crescimento de movimentos reacionários que rejeitam o pluralismo e desafiam as democracias.

Abre-se aqui um pequeno parênteses para que consideremos o presidente do Brasil enquanto líder da extrema-direita no país e proliferador constante de discursos inflamatórios. Antes mesmo de ser eleito, Jair Bolsonaro já destilava ódio e debochava de grande parte da população brasileira e ainda agora as falas desrespeitosas não cessam — inclusive tendo como um dos alvos favoritos jornalistas e veículos de imprensa. As declarações falsas e a postura de Bolsonaro devem ser vistas como potencial risco à democracia, uma vez que seus apoiadores podem encará-las como incentivo e suporte para que adotem práticas similares ou ainda mais violentas.

Não dá para normalizar discurso de ódio no jornalismo

Discurso de ódio é crime e não pode ser confundido com opinião. No jornalismo isso deveria ser ainda mais claro. Mas, até hoje, nos deparamos com casos em que profissionais da comunicação se apropriam do seu papel de opinar e proporcionar uma opinião crítica sobre determinado assunto para destilar preconceitos, ignorância e má-fé, indo contra qualquer princípio ético que norteia a profissão. Um fato recente ocorreu durante as Olimpíadas, quando o jornalista Dimosthenis Karmiris do canal ERT, na Grécia, foi demitido após um comentário racista contra um atleta sul-coreano.

No Brasil, em junho deste ano, o apresentador do programa Alerta Nacional (RedeTV), Sikêra Jr., emitiu diversas frases ofensivas à comunidade LGBTQIA+ após assistir ao filme comercial “Como explicar”, da rede de fast food Burger King — que propõe refletir sobre a inclusão de pessoas da comunidade LGBTQIA+ a partir da perspectiva infantil sobre amor ao próximo e pluralidade.

Apenas quatro dias depois das falas homofóbicas e somente após ter perdido grande parte de seus patrocinadores, o apresentador se pronunciou com um “pedido de desculpas”, mas ainda reforçando que continuaria a defender a “família tradicional brasileira” e as crianças. O que deixa claro que o pronunciamento aconteceu muito mais pela pressão causada com a perda dos anunciantes. Essa não é a primeira vez que Sikêra Jr. — que não se denomina jornalista, mas atua como apresentador ocupando um espaço midiático em que é possível discursar e ser ouvido por sua audiência — emite palavras de ódio.

A RedeTV adotou um posicionamento omisso em relação às manifestações agressivas de Sikêra. As cobranças por quebra de contrato com o apresentador resultaram apenas num comunicado à imprensa — em que diziam reprovar todo tipo de discriminação, que não concordavam com o comportamento adotado pelo comunicador, mas reforçando que ele havia se desculpado publicamente —, enviado cinco dias depois do ocorrido, e também após a pressão imposta por alguns telespectadores.

Um outro exemplo aconteceu no Rio Grande do Norte, em 2019. Durante a transmissão do programa 96 Minutos da rádio 96FM de Natal, o jornalista Gustavo Negreiros fez comentários misóginos contra Greta Thunberg, ele também havia atacado a ativista em programa na TV Tropical, filiada da Rede Record no RN. Após pressão do público e do caso ganhar repercussão nacional e internacional, Negreiros foi demitido. Quatro meses depois, entretanto, foi readmitido pelas duas emissoras.

O ponto de vista desses comunicadores não são apenas pontos de vista, ao contrário. É preciso entender que palavras intolerantes e sem qualquer empatia pelo próximo têm consequências reais que podem estimular e promover o ódio contra grupos sociais marginalizados.

Faltou bom senso aos profissionais, que além de romper as estruturas deontológicas de suas ocupações minaram a dignidade humana. Mas faltou senso de realidade também aos veículos midiáticos em que atuam. Em momentos como esse não basta uma nota à imprensa ou demitir um funcionário apenas para que quando a poeira baixe ele seja recontratado. Ao se limitar a esse tipo de atitude, as empresas estão endossando um posicionamento de hostilidade e violência e deixam aberta a janela da impunidade para que qualquer outro siga pelo mesmo caminho.

É preciso que as empresas de comunicação e seus profissionais lembrem do que preconiza o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, em seu artigo 9º, ou seja, o jornalista deve “opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem” e em seu artigo 10º, em que o profissional não pode “concordar com a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, políticos, religiosos, raciais, de sexo e de orientação sexual”. Mas não basta apenas entender e respeitar o que dizem os códigos e condutas éticas, é preciso que eles sejam inseridos no contexto da prática profissional e que os profissionais se tornem, de fato, adversários do discurso de ódio.

Texto publicado originalmente por objETHOS.

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Kalianny Bezerra é doutoranda do PPGJOR e pesquisadora do objETHOS