Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Esquerda evangélica no Brasil?

Crédito: Rafael Neddermeyer/Fotos Públicas

Diante do crescimento dos evangélicos no Brasil e de sua atual interferência na vida pública e política do país, não se limitando portanto aos sermões e hinos nas igrejas, seria oportuno saber em que direção agem os chamados homens e mulheres de Deus.

Para isso, seria importante separar as chamadas igrejas evangélicas tradicionais, implantadas no Brasil há mais de um século, como as presbiterianas, metodistas, batistas, chamadas de protestantes tradicionais, dos movimentos evangélicos mais recentes, derivados do pentecostalismo norteamericano, introduzido no Brasil no começo do século passado e representado pelas igrejas Congregação Cristã, Assembleia de Deus e mais recentemente a Igreja Universal.

De uma maneira geral, os evangélicos tradicionais pertencem à classe média ou com uma renda mensal de três salários mínimos, enquanto os evangélicos recentes se compõem de igrejas populares, congregando, na quase totalidade, fiéis de baixa renda ou pobres. Talvez por isso se sintam atraídos pela doutrina básica evangélica: o Evangelho da Prosperidade ou uma melhora econômica de vida propiciada por Deus aos seus seguidores.

A Igreja presbiteriana chegou ao Brasil pelo missionário norteamericano Ashbel Green Simonton, na metade do século XIX, e, na metade do século passado, já possuía dois conhecido deputados estaduais por São Paulo, Osny Silveira e Camilo Ashcar. Advogado, eleito em grande parte pelos presbiterianos, Camilo era da União Democrática Nacional, UDN, partido da elite paulistana visceralmente oposto aos trabalhistas.

Pouco antes do Golpe de 64 pelos militares, o Brasil fervia com o movimento pelas Reformas de Base, durante a presidência de João Goulart. Era a discussão das reformas sociais necessárias para acabar com a miséria e a desigualdade social na sociedade brasileira. Essa efervescência chegou até à juventude das igrejas protestantes, geralmente nas capitais como São Paulo, Rio, Recife e Belo Horizonte.
Talvez pela primeira vez, os jovens líderes presbiterianos que dirigiam a União da Mocidade Presbiteriana, ousaram propor no seu congresso nacional e na sua revista nacional, Mocidade, uma variante aos costumeiros textos religiosos de salvação eterna pela crença em Cristo – um outro tipo paralelo de salvação da miséria e da inegalidade social pelas reformas de base.

Isso acabou provocando um golpe dentro da Igreja, determinado pelo Supremo Concílio Presbiteriano: foi extinta a Confederação da Mocidade, anulados os congressos nacionais da mocidade, fechada a revista Mocidade e demitidos os seus funcionários. Por suspeição de desvios políticos de esquerda, termo não muito utilizado na época, preferia-se chamar de comunista.

Logo a seguir, houve praticamente uma intervenção nos seminários presbiterianos com demissão dos seminaristas suspeitos de apoiarem o movimento pelas reformas de base, acusados de criptocomunistas. Uma figura se destacou nessa caça aos esquerdistas, o reverendo Boanerges Ribeiro, que chegou a ser diretor do Instituto Mackenzie.

Entre os metodistas, o jovem jornalista Anivaldo Padilha foi preso no Rio de Janeiro, denunciado pelo bispo e pastor metodista de sua igreja como comunista, José e Isaias Sucasas. Preso e torturado, conseguiu se exilar.

Seu filho, Alexandre Padilha, foi mais tarde ministro no governo de Dilma Roussef. Seu depoimento foi prestado na Comissão da Verdade e sua história junto com a de outros denunciados e perseguidos pelas igrejas protestantes, na época da Ditadura Militar, foram contadas numa longa reportagem da revista Isto é, que se pode ler pela Internet.

Diante disso, poderíamos terminar afirmando não haver evangélico de esquerda no Brasil. Mas seria esquecer de João Dias de Araújo, pastor da Igreja Presbiteriana Unida de São Paulo, já falecido, um dos expulsos do seminário de Recife, autor do livro Inquisição sem Fogueiras, que se destacou pela participação de cristãos na luta por conquistas sociais. Compôs também a letra do hino religioso de fundo social, cantado na sua igreja — Que estou fazendo”, no qual um estrofe diz — “Há muita fome no meu país, Há tanta gente que é infeliz, Há criancinhas que vão morrer, Há tantos velhos a padecer. Milhões não sabem como escrever, Milhões de olhos não sabem ler: Nas trevas vivem sem perceber Que são escravos de um outro ser. Que estou fazendo se sou cristão, Se Cristo deu-me o seu perdão?”

São minoritários, mas há dentro do protestantismo tradicional gente de esquerda.

E agora, dentro do evangelismo popular recente, principal sustentáculo e apoio do presidente Bolsonaro, de ideologia nazifascista? Tirando-se a Marina Silva, declaradamente de esquerda, não deve haver.

A própria ideologia, o Evangelho da Prosperidade, de concepção capitalista, uma espécie de negócio ou acordo lucrativo com Deus, elimina o conceito de esquerda, em favor de uma teologia popular individualista. Ao contrário de esquerda, é um incentivo aos movimentos de extrema-direita.

Na Alemanha dos anos 30, Adolph Hitler organizou uma Igreja Cristã Alemã, que o apoiou na guerra. A maioria aceitou, mas felizmente nem todos. E havia o teólogo Karl Barth. Mas infelizmente, aqui no Brasil, não temos Karl Barth mas Edir Macedo e Silas Malafaia, apoiando um governo nazifascista.

Não, não há um evangelismo popular de esquerda no Brasil!

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.