Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nem pílula, DIU, preservativo ou aborto: abstinência

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Nada de tomar pílula, nem de colocar um dispositivo intrauterino, nem de usar um preservativo ou camisinha, muito menos praticar aborto. Não, não se trata de uma piada de mau gosto. Dona Damares Regina Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, advogada e pastora, acha que a gravidez não desejada nas nossas jovens e adolescentes tem solução: basta observar a abstinência. Em outras palavras, nada de trepadas precoces; no máximo, masturbação!

Dona Damares Regina Alves tem 57 anos, é advogada, mas é também ministra ou pastora evangélica. Começou a pregar a boa palavra, como se diz, na Igreja do Evangelho Quadrangular, implantada no Brasil nos anos 50 por pastores “curandeiros” norte-americanos, que pregavam a “cura divina” em inglês com intérpretes, em grandes auditórios repletos, em São Paulo. Como uma senhora com curso universitário e ministra da Mulher e da Família pode propor e falar um absurdo desses?

Pior que falar, ela apoia um projeto de lei em favor da proibição total do aborto, mesmo nos casos de anencefalia, fetos sem caixa craniana e sem cérebro, mesmo quando a gravidez puder provocar a morte da mãe e mesmo nos casos de meninas engravidadas num estupro. O primeiro passo nessa direção é a criação do Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os riscos do Aborto, marcado para 8 de outubro.

Para se evitar o aborto, a ideia é a de declarar o feto, logo após sua concepção como um sujeito jurídico, protegido pela lei. O aborto será considerado um assassinato. Conseguido isso, e nossos deputados e senadores sofrem uma forte influência e pressões religiosas para aprovar essa lei, será criado no Brasil mais um enorme problema social – famílias pobres com filhas adolescentes mães de bebês, muitas delas engravidadas por estupros, sem poderem trabalhar e todas essas famílias condenadas à miséria, subnutrição, sem condições de terem acesso a qualquer educação!

Enquanto a criminalização total do aborto não se transforma numa lei, como na Polônia, o governo Bolsonaro, que não se comove com os quase 600 mil brasileiros mortos, (muitos deles por sua prevaricação na gestão da crise sanitária provocada pelo coronavírus), edita portarias para dificultar o aborto por estupro e nos dois outros casos legais previstos pelas leis atuais. O objetivo é amedrontar as mães e intimidar os médicos.

Uma pesquisa feita entre deputadas e senadoras revelou outro escândalo: a maioria dessas mulheres parlamentares condena o aborto, em quaisquer circunstâncias, e votará contra o aborto e por sua criminalização, ignorando ou fazendo de conta ignorar a realidade social brasileira, na qual em cada seis nascimentos um é de mãe adolescente. E um terço dessas adolescentes engravida novamente quando seu bebê tem seis meses.

E qual a razão de mulheres como a própria ministra Damares agirem contra elas próprias? A religião! Ainda há pouco tempo, eram os conservadores e fundamentalistas católicos na linha de frente. Agora, estão unidos com os evangélicos num esforço conjunto de retrocesso. TFP, Opus Dei, Polônia, Hungria, evangélicos norte-americanos e o bloco evangélico na Câmara, no Senado e no governo. Voltamos à Idade Média!

O absurdo é tanto que dona Damares, a pastora ministra, chega a propor uma espécie de legalização da gravidez decorrente de um estupro, prometendo criar uma ajuda em dinheiro às mulheres engravidadas num estupro. É a chamada “bolsa estupro”, a ser paga às mães vítimas de violência até seu nascituro chegar aos 18 anos.

Ninguém que pense pode entender essa apregoada defesa da vida, enquanto esses mesmos fanáticos religiosos, tementes a Deus, ligados à extrema direita, um tanto nazifascistas, nada fazem para evitar a morte por fome e miséria das crianças nascidas nas favelas. Uma pesquisa revela: a cada ano, cerca de 28 mil meninas brasileiras, mal saem da infância, engravidam e dão à luz um bebê.

E a educação sexual?

O Brasil é um país machista. Meninas são estupradas, outras começam muito cedo sua vida sexual e a maternidade se torna sua única opção de vida, sem poder desfrutar da juventude. As leis são feitas por homens e quando uma mulher pode interferir, como é o caso de dona Damares, ela propõe abstinência, como se nas famílias amontoadas nas promíscuas pensões e favelas, as meninas sem escolaridade pudessem decidir, evitar ou impedir serem defloradas à força.

Mas digamos que as meninas evangélicas do Mackenzie ou católicas do Sion vivam num quadro familiar favorável, possam observar a abstinência e assim esperar o casamento para conhecer o sexo. Num país onde ao macho tudo é permitido, seu marido escolarizado e de boa formação também teria esperado o casamento para experimentar o sexo? Na hipótese positiva, o mais provável com dois virgens se encontrando na cama será o fiasco com trauma.

Na hipótese negativa, o noivo experimentado em sexo, ao se deparar com a virgem que lhe é oferecida, mesmo sem querer, acabará praticando um estupro. Ou, o mais comum, o outro lado dessa piedosa iniciativa da “abstinência” ou do “Vou Esperar”, será o de permitir a concretização do sonho de todo machão: o de ser o primeiro na defloração de sua santa virgem, mas com a desagradável e frustrante contrapartida dela ser analfabeta nas técnicas do amor.

Afinal, como o sexo não é pecado, ao contrário do que pregam padres e pastores muitas vezes hipócritas, não seria mais lógico proteger as jovens das favelas e da classe média com educação sexual desde as escolas primárias e aulas explicativas frequentes? Agentes sanitários distribuindo pílulas anticoncepcionais e preservativos para jovens e adolescentes, descobrindo o sexo?

Alguns e algumas poderiam sentir ser atraídos pelo mesmo sexo ou por ambos. Nada de mal, a adolescência e a juventude são épocas de experimentação e de descobertas. Algumas experiências mais ousadas poderiam levar à pílula do dia seguinte. E por que não ao aborto, caso a maternidade ainda não seja desejada? À jovem, à mulher cabe decidir, não ao pastor, nem ao deputado, senador e muito menos ao presidente.

Existem países assim. E qual o resultado? O número de abortos ilegais desparece, diminui o de abortos que não sejam por gravidez complicada para a mãe ou por feto não completo. Moças e rapazes podem viver a juventude, ter seus namoros, transar, estudar, preparar-se para o trabalho e ser felizes, sem ou com religião.

E por que não começar agora? Vamos todos nós fazer uma comemoração paralela no dia 8 de outubro? Marquem aí, coloquem nas redes sociais, divulguem, façam faixas coloridas, heteros, bi, homos — Dia Nacional da Educação Sexual! Uma resposta à altura a todas e todos os retrógrados e reacionários.

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.