Fotos El Mercurio/Wikipedia O ditador Pinochet e a quiropraxia: a dor como política de tortura e a dor como técnica de terapia.
Tangido por uma dor persistente de origem cervical no ombro esquerdo, procurei uma alternativa na tarde de segunda-feira, 21. Entrei num consultório deserto, sem secretária, no segundo andar de um shopping em área nobre de Brasília. Fui recebido à porta pelo próprio profissional, um quiropata.
A quiropraxia é uma forma de medicina alternativa, criada no início do século 20 por um controverso canadense, Daniel David Palmer (1845-1913), que nem médico era. Espírita, Palmer dizia ter recebido os fundamentos da quiropraxia “do outro mundo”, de um médico falecido chamado Jim Atkinson. Como o capitão Bolsonaro e seus seguidores, um século depois, Palmer também era contra a vacina: “É o cúmulo do absurdo tentar ‘proteger’ qualquer pessoa da varíola, ou de qualquer outra doença, inoculando-a com um veneno animal imundo”.
Apesar desses antecedentes polêmicos, procurei um quiropata por indicação do meu fisioterapeuta, porque a dor no ombro, além do tratamento muscular, exigia uma correção de postura cervical. A quiropraxia é uma técnica que se dedica à manipulação vertebral para minimizar os focos de dor gerados pelo mau alinhamento da coluna.
O que eu não sabia, naquela segunda-feira, é que o profissional que me atendia – um chileno sexagenário e imigrado há 30 anos para o Brasil – era ainda mais controverso que o negacionista Palmer. Quando, tentando ser simpático, abri a conversa elogiando o seu Chile natal, terra de muitas belezas e povo admirável, e falei na ditadura do general Augusto Pinochet, ele me corrigiu imediatamente: “Ditadura, não. Governo Pinochet”.
Começou então uma inesperada, inconclusiva discussão política que ficou cada vez mais tensa. Ao longo de quase uma hora, fiquei de pé, encostado na parede, procurando rebater cada absurdo autoritário do meu interlocutor. Nem tirei a camiseta, nem me deitei na maca, nem fui apalpado pelo quiropata. Só discutimos, e muito. Saí dali com a dor de sempre, acrescida de um mal-estar no estômago e a cabeça pesada diante de tanta estupidez.
Uma semana depois, decidi mandar uma mensagem a ele via WhatsApp para explicar melhor porque jamais voltaria lá. O nível de intolerância política e de radicalização ideológica contamina, hoje, até os profissionais que deveriam tratar da saúde. É importante rebater cada argumento autoritário para que não se admita, como normal, a política da violência que faz regredir a civilização ao rugido da selva. O quiropata que trata da dor da coluna não pode se inspirar no Pinochet que dissemina a dor pela tortura, entronizada pelo general que deu o golpe em setembro de 1973. A tragédia que matou Salvador Allende e a democracia no Chile completa 50 anos nesta semana.
Na mensagem abaixo, disfarço a identidade do psicopata – digo, quiropata – pelo nome fictício de Pancho:
Brasília, 28/agosto/2023
Don Pancho,
Na segunda, 28, fez uma semana que estive em teu consultório.
Deixei passar esse tempo para meditar sobre minha assombrosa passagem por lá e agora explico aqui por que desisti de ser teu paciente, decidido a nunca mais correr este risco.
Apresentei-me falando do carinho que tenho por tua terra, o Chile, que admiro pelas belezas do país e pela riqueza do povo. Comecei falando da última e inesquecível viagem que fiz com meu filho em 2018, percorrendo de carro os 1.200 km deslumbrantes da Carretera Austral, entre Puerto Montt e Villa O’Higgins, atravessando de norte ao sul as paisagens idílicas de florestas, lagos e montanhas andinas na Patagônia chilena. Tu me lembraste que a estrada foi construída por presidiários. Eu completei:
– Isso mesmo. Na ditadura Pinochet…
Teu aparte me espantou:
– Ditadura, não. Governo Pinochet!
A partir dali, durante 55 minutos, travou-se uma áspera e inconclusiva discussão política sobre democracia e ditadura, esquerda e direita, em que um não convenceu o outro. Eu acho incrível que um sujeito vivido e experiente como tu, Pancho, rejeite a constatação óbvia de todos os historiadores sérios e de todas as pessoas inteligentes: Pinochet encarna plenamente a figura execrável de um déspota assassino.
Foi um general sanguinário que impôs ao Chile uma ditadura de 17 anos que, entre 1973 e 1990, prendeu mais de 80 mil pessoas, torturou cerca de 30 mil e matou ou provocou o desaparecimento forçado (com dados oficiais de 1991 da Comissão Rettig, a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação do Chile) de exatas 3.197 pessoas – dez vezes mais do que os mortos pela ditadura brasileira em 21 anos de regime militar.
Pinochet, como tu nunca deves esquecer, faz parte de um grupo seleto de ditadores assassinos formado por gente ilustre como Hitler, Mussolini, Médici, Franco, Stalin, Videla e Stroessner, entre os mais notórios, que envergonham o mundo e rebaixam a espécie humana, ao longo da história.
Na discussão, Pancho, chegaste a dizer que foi no santo período do “governo” Pinochet que o país cresceu e tu te encaminhaste na educação, “quando não era a bagunça de agora”. Eu emendei dizendo que foi naquele tempo trágico que amigos meus foram presos, torturados e mortos, no Chile e no Brasil.
Tentando justificar a injustificável violência dos regimes de força, Pancho, usaste uma metáfora estúpida: “Se alguém me atira uma pedra, eu fico quieto? Não… Eu vou lá e dou um tiro no sujeito. Mato ele, mato a mulher dele, o pai dele, o filho dele, o cachorro dele… Mato todo mundo…”.
Tua frase boçal me lembrou, imediatamente, a reação igualmente truculenta e imbecil de dois típicos exemplos das ditaduras no Brasil e na Argentina, que certamente inspiraram e consolaram teu ídolo Pinochet.
Logo após assumir o comando do II Exército (hoje Comando Militar do Sudeste) em São Paulo, em janeiro de 1971, o general Humberto de Souza Mello tratou de visitar o foco central da violência política do regime na capital paulista, o DOI-CODI da rua Tutoia, centro de torturas onde morreram 51 brasileiros, entre eles o jornalista Vladimir Herzog.
Eram os tempos mais duros do ditador (não governo) Médici e aquele lugar tenebroso era comandado a ferro e fogo pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, o ídolo maior do estúpido capitão Jair Bolsonaro. Na fala aos assassinos perfilados para ouvi-lo no DOI-CODI, o general Souza Mello disse uma frase que, pela crueldade, lembra muito a tua, Pancho. Trovejou o general: “Matem os terroristas, matem os carteiros que entregam as cartas. [Matem] os familiares, os amigos, seja o que for. Só não quero que morra nenhum de vocês”.
A frase de 1971 do general Souza Mello, confissão demente de um serial-killer fardado e matriz do pensamento matador que contaminava então o Exército brasileiro, inspirou cinco anos depois uma boçalidade semelhante do general argentino Ibérico Saint Jean, nomeado interventor na província de Buenos Aires. Em maio de 1976, dois meses após o golpe de Videla, o general Saint Jean disparou uma ordem ultrajante aos seus comparsas: “Primeiro, mataremos todos os subversivos. Depois, seus colaboradores. Mais tarde, os seus simpatizantes. Então, mataremos os que permanecerem indiferentes. E, finalmente, vamos matar os indecisos…”
Fiz um baita esforço, Pancho, mas não consegui descobrir nenhuma diferença entre a tua frase cretina e as frases francamente assassinas dos dois generais, em São Paulo e em Buenos Aires.
É inacreditável que alguém, com um resquício de humanidade e uma dose mínima de bom senso, possa pensar e – pior – dizer tamanho disparate. Pois tu conseguiste te nivelar a esta súcia de psicopatas, Pancho.
No auge de nossa inútil discussão, Pancho, te definiste como “extremista” e “linha dura”, o que te coloca, no espectro humano, no fundo do poço da intolerância política.
Bolsonaro, que tu deves elevar ao mesmo patamar de divindade de Pinochet, foi perguntado em 2011, quando era apenas um reles deputado federal do baixo clero no Congresso, se ele era de direita. “Direita não, sou extrema-direita”, respondeu com orgulho. Treze anos antes, em 1998, quando era ainda menos conhecido, o capitão Bolsonaro já estava alinhado contigo: “O general Pinochet devia ter matado mais gente no Chile”, disse o capitão numa entrevista na TV. Ao contrário de ti, Bolsonaro esqueceu de botar o cachorro na lista…
Em 2017, em Porto Alegre, já em campanha para presidente, Bolsonaro se apresentou a um grupo de empresários: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”.
Tentaste dourar a pílula de tua mentalidade matadora, Pancho, dizendo que, na velhice, agora tens um pavio mais curto. Uma frase boboca para quem se diz adepto da medicina alternativa, na condição de quiropata. Nem é preciso ter noções médicas para saber que pavio, no sentido de discernimento, paciência ou tolerância, reflete o tempo de amadurecimento que aprimora no ser humano o atributo da racionalidade, filho direto da sabedoria.
A gente, quanto mais velho, mais sábio fica, Pancho, por força das experiências e da temperança que faz a razão prevalecer sobre a paixão. Pavio curto é típico dos adolescentes, das crianças, do espírito infantil que caracteriza a juventude. A maturidade pressupõe a racionalidade. Só um imbecil justifica as bobagens da velhice pela fantasia do pavio curto. Arranja outra desculpa menos esfarrapada para explicar tua cabeça belicosa, Pancho.
Como sabemos eu e tu, Pancho, a quiropraxia é uma forma pseudocientífica de medicina alternativa, que concentra sua técnica na manipulação da coluna vertebral, que seria o foco de todos os males irradiados dali pelo sistema nervoso. Tu mesmo, de forma exaltada, reforçaste para mim a postura radical de que todos os nossos males – da queda de cabelo à unha encravada, da dor de cabeça à prisão de ventre – têm origem nas chamadas subluxações vertebrais: “É tudo coluna, tudo começa e acaba lá. Não adianta exercício físico, fisioterapia, academia. Nada disso”.
Achei até agressiva tua postura diante das sessões de tratamento que eu tenho com o teu ex-paciente, meu fisioterapeuta, cuja academia eu frequento há duas semanas e que me indicou teu nome. ”Tens que parar tudo enquanto eu te trato aqui. Nem academia, nem caminhada, nenhum exercício. Eles atrapalham o que eu vou fazer aqui”, foi teu alerta.
Teu método peculiar de convencimento parece mais orientado pelo jeito cavalar de ser do general Pinochet ou do capitão Bolsonaro do que pelo maneirismo zen do iluminado Dalai Lama. Tens um tom impositivo, agressivo, abrutalhado, de quem acredita na palavra da força mais do que na força da palavra, e isso destoa muito do estilo cordial, amigável e convincente do meu dedicado fisioterapeuta. Ele está sempre sorridente, gentil, empático, enquanto tu estás sempre sério, casmurro, com cara de brabo, antipático. Apesar das aparências, tu pareces um cara mal resolvido, Pancho.
Ainda bem que não sei nada de tua vida, mas nada justifica teu comportamento belicoso, de conflito com os demônios e preconceitos que te devastam por dentro. Só posso lamentar tudo isso.
Somos dois idosos – eu com 72 anos e tu já sexagenário.
Na melhor das hipóteses, já estamos no terço final de nossas vidas.
Vivemos o tempo suficiente para pesar as coisas boas e ruins da vida e tirar delas as conclusões mais sensatas sobre o que é bom e o que é ruim. Tua visão permissiva de vida e morte, do certo e errado, pelo que percebi, produziu em ti um sentimento azedo de vindita e ressentimento que não pode fazer bem para tua cabeça e teu fígado – e isso, com certeza, não tem nada a ver com o desalinhamento da coluna.
Parece mais um caso de ideias e convicções mal alinhadas, Pancho. É um problema exclusivamente teu, cara, não é culpa da humanidade.
Tua proposta de resolver divergências e querelas na bala, no tiro, matando todos e até o cachorro, não combina com a urbanidade que se espera de um profissional que cuida da saúde, a tua e a dos outros. E não combina com o ambiente urbano, os hábitos e bons costumes de uma cidade, de uma comunidade civilizada. Tua reação irada e tua disposição para o conflito na porrada não condiz com a civilização e com a boa educação, Pancho.
Tua receita é a lei da selva, do mais forte, de quem atira primeiro, como se fazia no faroeste mais primitivo e bandoleiro.
Tem alguma coisa muito errada contigo, Pancho.
Ou erraste de lugar ou erraste de profissão.
Como diz a música do Gilberto Gil, se oriente, rapaz!
Perdoe a longa mensagem, mas eu te devia uma explicação mais detalhada da razão de não voltar ao teu consultório. Eu fiquei exatos 55 minutos aí, nem cheguei a tirar a camiseta, nem chegaste a palmilhar a musculatura avariada do meu ombro – certamente, resultado perverso dessa maldita coluna que tudo explica…
Todo o meu tempo aí foi consumido nessa inesperada e inútil discussão, que começou com tua fracassada tentativa de me convencer de que a sangrenta e cretina ditadura do Pinochet não passou de um inocente “governo”…
Baita perda de tempo, Pancho!
Finalizando, vou te dizer agora o que nunca imaginei dizer a ninguém:
Pancho, foi um enorme desprazer te conhecer!
Ah, e antes que eu me esqueça:
Vade retro, Pinochet!
Viva, Allende!
Saludos, adiós.
***
Luiz Cláudio Cunha, o ex-quase paciente do quiropata extremista, é jornalista e autor de “Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios” (ed. L&PM, 2008).