Para muitos pode ter passado despercebido, mas a longa entrevista da veterana jornalista e apresentadora de TV Leda Nagle com o pastor Silas Malafaia circulou bastante nos meios evangélicos. E se tornou importante por permitir uma visão sem retoques do mais próximo conselheiro espiritual do presidente Bolsonaro.
No canal do YouTube com seu nome parece ser norma deixar o entrevistado se sentir à vontade. Em lugar de tentar extrair revelações, Leda estimula o entrevistado a falar de maneira espontânea, sem a pressão de precisar resumir. E essa técnica de entrevista pode permitir surpresas, porque falando sem interrupções o entrevistado pode se sentir como na poltrona diante do psiquiatra, revelando seu “eu” interior sem retoques. Foi o que ocorreu com Silas Malafaia, e sem querer fazer trocadilho de mau gosto, poderíamos até resumir como “as más falas” de Malafaia, essa longa entrevista de mais de uma hora.
Ou seja, Leda Nagle sabe dar corda, nos dois sentidos, ao entrevistado, a ponto dele se esquecer de suas autoproteções. Isso lembra um velho ditado ou provérbio português, “dar corda para se enforcar”. Leda parece ser exímia nisso. Quando se dá muita corda a alguém, nem todos se enforcam, mas a maioria se prende, se embaralha, se amarra nos nós que vai criando com a corda, mesmo sem perceber.
Por que essa citação do velho ditado? Porque foi essa a impressão e mesmo a conclusão deixadas depois de se ouvir o pastor Silas Malafaia se enrolando na corda que lhe fora dada pela tranquila Leda, com sua voz inspiradora de confiança. O esperto líder evangélico acostumado, ao que dizem, a falar com Deus e com seu humilde e fiel rebanho de ovelhas, embarcou tão inocentemente na entrevista, revelando seu ego nada humilde e seu narcisismo, que provavelmente sequer percebeu ter chegado ao ponto de se enforcar ele mesmo.
E qual a receita de Leda Nagle para se chegar a um tal resultado? Ao que parece, simples, simples demais. É só se deixar o entrevistado falar, falar, se encher de si mesmo, e ir se amarrando por si mesmo, sem necessidade de saca-rolha. Essa técnica não é simples, exige tempo e um clima de tranquilidade, mas Leda não tem pressa e nem está à busca de um furo jornalístico.
Nestes tempos de muita oração, de muita citação bíblica, de muito abraço de irmão sem máscara, essa foi a melhor entrevista de Silas Malafaia, para quem estiver fazendo uma pesquisa sobre os líderes evangélicos nestes dias estranhos em que vivemos, gravar e consultar.
A entrevista de Leda com Malafaia aconteceu no dia seguinte às manifestações do 7 de setembro, por ele consideradas as maiores já realizadas no Brasil (vimos que Bolsonaro também afirmou isso no seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, mas isso é uma mentira deslavada).
Debaixo dessa emoção de ter presenciado uma grande vitória, na avenida Paulista, junto no palanque presidencial com outros sete pastores evangélicos, Malafaia enrolou ainda mais a corda no pescoço. Esquecendo-se das ponderações e dos conselhos do livro bíblico Provérbios, no Velho Testamento, deixou crescer seu entusiasmo e sua vaidade passou a ir num crescendo, na sequência da entrevista.
No sentido inverso, quase no mesmo tempo em que o combativo pastor concedia sua entrevista, era o presidente Bolsonaro quem telefonava ao ex-presidente Michel Temer para ser orientado, preocupado com as prováveis consequências por ter usado uma linguagem desrespeitosa ao se referir ao ministro do STF, Alexandre de Moraes. Malafaia acreditava na mentira criada, do grande sucesso das manifestações, não sabia ainda das preocupações de Bolsonaro, nem de que acabaria assinando uma carta de desculpas ou de pedido de perdão, redigida por Michel Temer; por isso, também quis criticar o ministro Alexandre de Moraes, chamando-o de ditador de toga. Ao saber, mais tarde da publicação da Carta à Nação de Bolsonaro, Malafaia deve ter se arrependido por ter se excedido e deixado sua boca pronunciar um impropério.
Mas ainda embalado pelo entusiasmo, Malafaia — que tem o dom da profecia, pois anda anunciando um próximo retorno de Cristo — predisse algo mais próximo: se houver fraude nas eleições de 2022, e Bolsonaro perder, Deus irá castigar e punir os responsáveis. Haverá uma intervenção divina, disse Malafaia, ou seja, interpretando-se, haverá um golpe praticado diretamente por Deus, o que será uma novidade mundial!
Diante de tanto entusiasmo de um Malafaia cheio de si mesmo, quase arrogante, Leda preocupada arriscou uma curta pergunta: “E você não tem medo de ser preso por dizer isso?” Ao que o orgulhoso pastor respondeu: “Não tenho medo do ditador de toga, porque sou um líder religioso. Mas se vierem me prender, proibirei meu advogado de impetrar um habeas corpus e não colocarei nenhuma tornozeleira”.
Será que Malafaia acredita mesmo que Deus ou seus apoiadores, suas ovelhas ou seu gado, irão abrir a porta da prisão para libertá-lo? Mesmo com a atual crise econômica, que está levando muitos a fazerem caldo de pés de galinha para substituir a carne?
***
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.