Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

150 anos de um clássico

O ano de 2009 marca um século e meio da publicação do Sobre a Liberdade (On Liberty), de John Stuart Mill (1806-1873). Reconhecido universalmente como um dos textos fundadores do liberalismo por sua defesa intransigente do individualismo e da liberdade individual, o ensaio tem sido rotineiramente invocado – ao lado do Areopagítica (1664), de John Milton (1608-1674) – como um dos pilares da defesa da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Juízes, empresários de mídia, jornalistas e ONGs, dentre outros, recorrem a Mill para justificar seus votos e/ou alertar sobre as ameaças às liberdades fundamentais, oriundas da ação de seu inimigo natural, o Estado.


Por óbvio, ao se comentar um texto clássico, publicado há 150 anos, corre-se sempre o risco da simplificação e de se cometer algum tipo de anacronismo. Vale, todavia, celebrar a ocasião chamando a atenção para um aspecto pouco lembrado do Sobre a Liberdade: de onde Mill considerava que partiam as principais ameaças à liberdade dos indivíduos?


Liberdade versus autoridade


‘Liberdade’ talvez seja uma das palavras com o maior número de significações e, mesmo assim, certamente uma das mais presentes no pensamento chamado de moderno. Durante o período da ‘guerra fria’, foi utilizada ideologicamente no Ocidente para demarcar duas visões de mundo em conflito e, mesmo depois do fim da União Soviética, ela continua sendo – inclusive entre nós – indiscriminadamente empregada para camuflar e/ou proteger os mais diversos tipos de interesse.


Na introdução de Sobre a Liberdade, Mill descreve as mudanças sofridas na luta entre liberdade e autoridade, ao longo do tempo. Na Antiguidade, o conflito se dava entre súditos e governantes e a liberdade era reduzida à proteção contra a tirania dos governantes, percebidos como estando sempre em posição antagônica em relação ao povo.


Com governantes eleitos e temporários, acreditou-se que a questão estava resolvida. No entanto, utilizando-se da expressão cunhada por Alexis de Tocqueville (1805-1859), Mill lembra o perigo da ‘tirania da maioria’: a sociedade – e não o governo – passa a fazer as vezes do tirano. E aqui ele menciona o poder dos ‘costumes’ (do latim mores), identificados como uma ‘segunda natureza’ que, no entanto, é continuamente tomada como sendo a primeira.


No capítulo III, que trata ‘Da individualidade como um dos elementos do bem-estar’, Mill retoma de maneira mais específica e veemente a questão do ‘jugo da opinião’ (the yoke of opinion) – inclusive de seus diferentes conceitos –, do controle que ela exerce sobre o indivíduo e suas conseqüências. Inclui também o papel dos jornais e de seus jornalistas na formação das opiniões.


Vale a longa citação, lembrando que o texto se refere à Inglaterra vitoriana de meados do século 19:




‘Nos dias de hoje, os indivíduos estão perdidos na multidão. Em política, é quase uma trivialidade dizer que agora a opinião pública governa o mundo. O único poder que merece esse nome é o das massas e o dos governos, que constituem o órgão das tendências e instintos da massa. Isso vale tanto para as relações morais e sociais da vida privada, como para as transações públicas. O que se chama de opinião pública nem sempre é a opinião da mesma espécie de público: nos Estados Unidos, o público é toda a população branca; na Inglaterra, principalmente a classe média. Porém, formam sempre uma massa, isto é, uma mediocridade coletiva. E o que é uma novidade ainda maior, a massa não recebe suas opiniões de dignitários na Igreja e no Estado, de líderes manifestos ou de livros. O que pensam é criado por homens muito semelhantes a eles mesmos, os quais se dirigem a eles ou falam em seu nome, impulsivamente, por meio dos jornais’ (pág.101).


A influência de Tocqueville


John Stuart Mill, é sabido, conheceu pessoalmente, foi leitor e recebeu grande influência de seu contemporâneo francês Alexis de Tocqueville. Fez, inclusive, uma longa e detalhada resenha, publicada em duas partes, de A Democracia na América (1835-1840). Nela, Mill escreveu concordar com Tocqueville sobre o tipo de tirania a ser temido: era aquele ‘não sobre o corpo, mas sobre a alma’.


Na sua introdução à edição da Martins Fontes (2000) de Sobre a Liberdade (utilizada como referência aqui), escrita originalmente em 1959, ao falar sobre o compromisso de Mill com a diversidade e a individualidade, Isaiah Berlin cita uma passagem de Tocqueville com a qual, afirma, certamente ele (Mill) concordaria:




‘Usando de comparações, pode-se dizer que agora lêem as mesmas coisas, ouvem as mesmas coisas, vêem as mesmas coisas, vão aos mesmos lugares, têm suas esperanças e seus medos orientados para os mesmos objetos, têm os mesmos direitos e liberdades, e os mesmos meios de assegurá-los… Todas as mudanças políticas da época a promovem, uma vez que todas tendem a elevar o baixo e rebaixar o elevado. Toda expansão da educação a promove, porque a educação submete as pessoas a influências comuns… O aperfeiçoamento dos meios de comunicação a promove… O aumento do comércio e da manufatura a promove… A ascendência da opinião pública… forma uma massa tão grande de influências hostis à individualidade (que) nesta época o exemplo de dissidência, a mera recusa a ajoelhar-se diante do costume é por si só um serviço’ (págs. XXXVII-XXXVIII).


Mais adiante, Berlin retoma as observações de Tocqueville ao falar sobre ‘a aguda consciência em nossa época do efeito desumanizador da cultura de massas (…) (da manipulação dos homens) pelos meios de propaganda de massas e pela comunicação de massas’. E conclui que ‘tudo isso Mill sentiu profunda e dolorosamente’. E mais, afirma que era esse, na verdade, o tema de Sobre a Liberdade e que Mill antecipou a permanência de sua relevância ao dizer ‘é de temer que os ensinamentos (do ensaio) conservem seu valor por muito tempo’ (pág. XLVI).


Mill e os frankfurtianos


É interessante observar que Tocqueville foi também lembrado por Horkheimer e Adorno no famoso Dialética do Iluminismo para caracterizar a ‘indústria cultural’. Eles citam um pequeno trecho de conhecida passagem do A Democracia na América que trata do poder exercido pela maioria e suas conseqüências (vol. I, parte II, capítulo 7). Exatamente o trecho a que Mill fizera referência na resenha que publicou sobre o livro.


Apesar de partir de pressupostos radicalmente distintos daqueles de Mill, os frankfurtianos, no texto escrito originalmente no exílio norte-americano em 1947, estão também preocupados com a ‘autonomia do espírito’ – cuja perda, para eles, está ocorrendo diante da transformação da cultura em mercadoria. Dizem eles:




‘A análise feita há cem anos por Tocqueville verificou-se integralmente nesse meio tempo. Sob o monopólio privado da cultura `a tirania deixa o corpo livre e vai direto à alma. O mestre não diz mais: você pensará como eu: sua vida, seus bens, tudo você há de conservar, mas de hoje em diante você será um estrangeiro entre nós´. Quem não se conforma é punido com uma impotência econômica que se prolonga na impotência espiritual do individualista’ (Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar; 1986; pág. 125).


Lições contemporâneas


A ameaça à liberdade – em particular à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa – tem sido identificada no espaço público agendado pela grande mídia como vindo exclusivamente do Estado, mesmo que estejamos vivendo em um Estado de Direito, no pleno funcionamento das instituições democráticas.


Nada mais oportuno, portanto, do que lembrar que este não era o entendimento de John Stuart Mill em Sobre a Liberdade. Para ele, o poder dos ‘costumes’, da uniformidade do pensamento (hoje talvez ele dissesse, da opinião pública construída, sobretudo, pela grande mídia) constituía a verdadeira ameaça à individualidade, à diversidade e à pluralidade.


A liberdade de imprensa, no liberalismo de Mill, encontra sua justificativa na medida mesma em que permita a circulação da diversidade e da pluralidade de idéias existentes na sociedade – vale dizer, garanta a universalidade da liberdade de expressão individual ou do direito à comunicação –, condição sine qua non para o aparecimento da verdade, embora nada garanta que ela venha a prevalecer.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009; no prelo)