O primeiro desclassificado da Copa de 2014 é o goleiro Bruno – segundo ele mesmo, em conversa captada dentro de uma delegacia. ‘Acabou’, resumiu o suspeito de tramar a morte da ex-amante Eliza Samudio. Diante de coisas que acabam antes da hora – a vida de Eliza e a próxima Copa –, o goleiro mostrou até onde pode ir sua orgia entre os fins e os meios.
Mas não está sozinho nessa. Este ano mesmo, seu ex-colega de clube, o Imperador Adriano, ficou muito chateado com a imprensa. Achava que seus violentos conflitos com a namorada eram problema dele. Bruno saiu em seu socorro e explicou, diante de câmeras e microfones, que uns tabefes são normais na vida de um casal. Ninguém tinha que meter a colher. ‘Quem nunca saiu na mão com a mulher?’, ponderou o goleiro.
Invadida por aquela privacidade peculiar, a imprensa manteve a cobertura, e mereceu um recado de Adriano: ‘Deus perdoe essas pessoas ruins’, dizia a mensagem exibida pelo jogador depois de um gol.
De fato, essas pessoas ruins que metem a colher em tudo – e ainda contam para todo mundo – têm preocupado muita gente. Isso ficou claro na Copa da África do Sul. O goleiro Júlio César, por exemplo, não fez rodeios. Escalado para uma entrevista coletiva, foi logo dizendo que por ele não estaria ali. Recado curto e grosso ao monte de abelhudos interessados em invadir a privacidade da seleção brasileira.
A blindagem criada pelo técnico Dunga e seu auxiliar Jorginho, dificultando ao máximo o acesso aos jogadores, surtiu efeito. Personagens como o cabeça de área Felipe Melo ficaram à vontade para ser o que eram. Com a desenvoltura de um Bruno – e uma lógica bastante similar – o jogador ensinou que bola boa é a que gosta de ser chutada, ‘como mulher de malandro’.
Olhos vidrados
A Copa terminou antes da hora para o Brasil, com a ajuda de Felipe Melo, expulso após pisotear um adversário holandês. O titular mais contestado de Dunga achou o cartão vermelho um exagero. Afinal, sua vítima pôde até continuar andando: ‘Eu tenho força pra quebrar a perna do Robben.’ Sem interferência das pessoas ruins, os fins e os meios de Felipe Melo puderam curtir sua orgia em total privacidade. Sem sexo e sorvete, que aí já seria demais.
A doutrina Dunga operou outros milagres. Kaká, o jogador mais bonzinho da história do futebol brasileiro, se transfigurou. Numa coletiva morna, diante de uma pergunta rotineira, entrou de carrinho no repórter acusando o pai dele de lhe fazer perseguição religiosa. Um guerreiro. Em campo não foi diferente. O bom moço interpelava o juiz, fazia faltas, reclamava de tudo, levou cartão amarelo, vermelho, suspensão. Sua aura de escoteiro parecia recém-saída de um workshop com Serginho Chulapa e Edmundo Animal.
Nenhuma metamorfose, porém, foi tão impressionante quanto a de Robinho. Sob Dunga, o irreverente moleque da Vila virou um gladiador. No jogo da desclassificação, desde o primeiro minuto urrava contra os holandeses, ameaçando-os com olhos vidrados e rosto crispado, como se tivesse visto um Odvan no espelho do vestiário. Um Robinho pesado, com a alegria esquecida em algum comercial de automóvel, escalado para assistir às pedaladas de Robben – o neguinho branco de Amsterdã.
Nobres fins
Mas o que derrubou a seleção foi a imprensa – essa gente ruim que existe para atrapalhar as orações de Jorginho, blasfemar contra os pastores milionários de Kaká, estranhar a ideologia de Felipe Melo, aborrecer Júlio César com conversa fiada, povoar de paranoias a mente cristalina de Dunga.
Na volta ao Brasil, o comandante da seleção derrotada deu a entender que permaneceria no cargo. Ouvindo aquilo, o presidente da CBF, que o inventara como técnico, revogou sumariamente sua invenção.
Demitido, Dunga enviou carta aberta à entidade, na qual argumentava, basicamente, que fizera tudo certo. Um documento histórico para os anais da autocrítica. Que ninguém estranhe se o agora ex-técnico reaparecer como palestrante no próximo Fórum Social Mundial de Porto Alegre, ou em algum congresso desses contra tudo isso que aí está.
Dunga chegou a viver momentos de herói na África. Seu isolamento quixotesco contra inimigos imaginários comoveu a legião dos oprimidos de plantão. Encarnou o fetiche do homem puro, destemido e perseguido pelo sistema opressor. Formaram-se correntes de apoio na internet, e até a conclamação a um boicote contra a mídia burguesa durante a Copa. O obscurantismo com verniz revolucionário nunca sai de moda.
O goleiro Bruno se queixava da imprensa para defender o Imperador Adriano e suas lógicas privadas. Dunga se queixava da imprensa para defender sabe-se lá o que. Políticos influentes se queixam da imprensa para defender o povo – oferecendo-se para criar formas ‘sociais’ de controle da informação.
Todos eles sabem quais são as verdades que servem aos fins mais nobres. As que não servem, melhor enterrar.
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Jornalista