Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

57 bilhões contra a cidadania

O professor Venício A. de Lima escreveu neste Observatório um vigoroso e irretocável artigo sobre a pretensão da auto-denominada indústria da comunicação de blindar aquilo que chama de ‘liberdade de expressão comercial’. Sugiro a releitura dessa matéria [‘Sobre a ‘liberdade de expressão comercial‘] antes de passar ao parágrafo seguinte.

Uma ‘indústria de 57 bilhões de reais por ano’, em que pontifica o conjunto das grandes agências de propaganda que atuam no Brasil (contam-se nos dedos as que não são multinacionais), defende a liberdade de dizer ao consumidor brasileiro o que deve consumir e que hábitos de consumo convém adotar. Quer colocar-se sob o mesmo guarda-chuva da liberdade de expressão democrática, tão cara à imprensa. E para conseguir isso não hesitará em aplicar o poder de convicção daqueles bilhões de reais/ano em tentativas de mudar a Constituição ou criar legislação favorável.

Liberdade de expressão comercial tem a ver com liberdade de comércio e as restrições a essa liberdade não têm nada a ver com censura à liberdade de expressão. A legislação municipal de São Paulo, por exemplo, que instituiu o programa Cidade Limpa, é medida civilizadora, de ordenação urbana, e nos protestos que gerou entre os empresários de outdoor não percebi alusões à ofensa a essa liberdade de expressão comercial.

Existem restrições

Passei boa parte da minha vida profissional criando anúncios e nunca senti tolhida a minha liberdade de criá-los, nem mesmo durante a ditadura. Ou melhor, o grande cerceamento a essa peculiar liberdade de expressão vinha do dono do dinheiro, o anunciante, que pagava o espaço em que eu exercia a minha ‘liberdade’.

Tal como o deviam fazer todos os meus colegas de profissão bem-sucedidos, habituei-me a censurar a mim mesmo, a só dizer aquilo que convinha (ao anunciante), aquilo que poderia ‘motivar’ o público-alvo. E tratava de dizê-lo de modo amável, sem chocar ninguém, criando peças pasteurizadas, porém atraentes, que também fossem palatáveis ao dono do negócio, à agência. Deixei de receber aumentos de salário quando ousei criar campanhas que a agência nem ousou apresentar ao anunciante.

Eu tinha toda a liberdade de fazer anúncio de qualquer produto – bebida, chiclete, sabão, pneu, dentifrício, liquidificador e fortificante. Era só o patrão mandar e eu fazia. Pedro Mourão, então meu chefe, recusou-se a fazer um anúncio para rádios Telespark, alegando, por preguiça ou convicção, que rádio não era mais um produto anunciável. Foi despedido e eu fiz o anúncio.

Se então me fosse confiada a tarefa de criar uma campanha para difundir o consumo de, digamos, uma marca de maconha, devidamente legalizada, tenho a certeza de que a cabeça de publicitário que então pairava sobre meus ombros conceberia uma campanha brilhante, candidata aos ‘leões’ de Cannes. E se o cliente aplicasse na mídia uma verba suficiente, nem de longe parecida com os atuais 57 bilhões de reais da indústria, a maioria dos brasileiros seria convertida em felizes viciados. Hoje isso já não seria possível, pois existem, sim, restrições à liberdade de expressão comercial.

Medida ‘severa e excessiva’

Ao reivindicar liberdade de expressão comercial, a indústria da comunicação não pretende conservar ou ampliar a liberdade a que me referi, a liberdade de criação das agências. Ela busca, na verdade, garantir liberdade de ação aos interesses dos que gastam 57 bilhões reais para consolidar, multiplicar e se ‘posicionar’ nos mercados. O inimigo a abater é, então, o poder público que, em suas várias instâncias, pretende proteger o cidadão que existe dentro desses mercados e é às vezes vítima das investidas publicitárias contra sua saúde, bolso, cultura ou integridade.

A indústria instituiu o Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) para coibir abusos, praticando a auto-regulamentação, e o considera bastante. Em seu artigo,. Venício Lima dá um expressivo exemplo de deficiência dessa auto-regulamentação e de descumprimento da lei.

A resistência a normas e regulamentos que restringem a expressão publicitária não é monopólio nacional. Veja só o que acontece na civilizada Europa. A Comissão Européia pretende obrigar a indústria automobilística a reservar 20% do espaço de cada anúncio de carro para que o possível comprador seja informado sobre a quantidade de dióxido de carbono que aquele modelo despeja na atmosfera. Trata-se de mais uma etapa de uma ofensiva continental para diminuir as emissões de CO2.

Segundo o El País (23/7), os automóveis respondem na Europa por 12% dessas emissões. Entretanto, a indústria automobilística se opõe à medida. Para Fernando Acebrón, diretor da Associação Espanhola de Fabricantes de Automóveis, a imposição é ‘muito severa e excessiva’. Disse textualmente: ‘Limita a capacidade criativa e a liberdade do anúncio, que não deve estar centrado em informar, e sim em ser atraente’.

Ofensiva ecológica

De acordo com o jornal, a indústria que mais gasta em propaganda na Espanha é a automobilística: 913 milhões de euros em 2007. Por isso, os anunciantes também estão inquietos com as intenções do governo europeu. ‘Regulamentar a publicidade não irá solucionar o problema’, afirma Carlos Lema, assessor jurídico da Associação Espanhola de Anunciantes. ‘Só vai tornar os anúncios mais caros.’ E acrescenta: ‘Até agora, a indústria demonstrou um comportamento responsável, obedecendo a uma férrea auto-regulamentação’.

Mais cândida no repúdio à obrigação de informar nos anúncios a quantidade de CO2 emitida pelos carros, outra corporação, a Associação dos Construtores Espanhóis de Automóveis, declara que ‘corre-se o risco de desmotivar os compradores de veículos. Além disso, a publicidade é uma importante fonte de receita para a mídia e um dos pilares da liberdade de imprensa’.

O consumidor espanhol, que não é bobo, não esperou os anúncios com a ‘atraente’ informação sobre a quantidade de CO2 emitida pelos carros. Desde janeiro, os únicos carros que registraram aumento de vendas (32%!) são aqueles que emitem menos de 120 g/km.Todos os demais tiveram queda de vendas. Os carrões e os 4×4 venderam 44% menos. A razão foi menos o amor à natureza e mais o amor ao bolso: também desde janeiro os carros menos poluidores gozam de isenção do Impuesto de Imatriculación, equivalente ao nosso IPVA.

Não sei se Venício Lima e eu estamos gastando demasiada tinta com este assunto. A indústria da comunicação não será tão retrógrada, tão reacionária, diante dos ainda tímidos avanços civilizatórios que vêm acontecendo no nosso país. E, a propósito de gastar tinta, tenho conhecimento de que o próximo lance da União Européia na sua ofensiva ecológica será compelir todos os produtos de consumo a estamparem nos seus rótulos a quantidade de poluentes liberados no seu ciclo de produção. Cosméticos, refrigerantes, alimentos industrializados e tudo mais, inclusive os cartuchos de tinta, deverão informar ao consumidor qual é o lixo criado por eles desde a matéria-prima até o descarte dos resíduos finais. E as indústrias parecem estar de acordo.

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Comunicólogo, São Paulo, SP