Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Necessita-se de inquietude

A construção de uma democracia real e sólida no Brasil, como em qualquer outra sociedade madura, não acabará sendo possível sem a participação ativa dos meios de comunicação. Assim será, mas não somente por aqueles pertencentes às grandes corporações, eternos dependentes do interesse de seus anunciantes, e sim por um jornalismo alternativo que use a internet como meio para se relacionar com o mundo, intercambiar ideias e expressar-se.

Jeffrey Ghannam, em seu relatório publicado em março deste ano para o Center of International Media Assistance, em Washington, analisa o importante papel dos meios de comunicação digitais em países do Oriente Médio e norte da África um ano depois da chamada “primavera árabe” e sentencia: “O potencial da internet como ferramenta ativa no processo de democratização é inegável. (…) O impacto social transformador das redes de meios de comunicação e plataformas está totalmente estabelecido”.

Ao mesmo potencial se refere o autor do capítulo intitulado “Don’t hate the media, be the media”(“não odeie os meios de comunicação, seja um deles”) de Peace Journalism, War and Conflict Resolution (2010). O doutor Richard Lance Keeble, da Universidade de Lincoln, Reino Unido, afirma, desde o seu ponto de vista, que “a internet e a blogosfera somente se tornam interessantes quando servem para desafiar o sistema como elemento crucial no suporte a movimentos sociais e políticos”.

Apoio e iniciativa

No Brasil, embora cerca de 78 milhões de cidadãos maiores de 16 anos, segundo o Ibope/Nielsen (2011), tenham acesso à internet e o número de usuários de Facebook e Twitter ultrapasse os 30 milhões, seguimos sendo um país com significativos problemas sociais em todos os níveis da população, entre eles o coronelismo político e a corrupção, as questões indígenas, o acesso à terra, a segregação e a marginação social e as desigualdades de gênero. Depois de ler a Ghanamm e Keeble, então, passo a perguntar o que faria falta ao país para que se originasse nele também uma espécie de “revolta árabe”, um movimento genuinamente social, nascido das bases de nossa cidadania.

A experiência que a sociedade civil brasileira está levando a cabo frente ao desenvolvimento econômico (cada vez mais frequentemente traduzido em um aumento da classe média) pode levar, no entanto, a que se reflita também sobre o desenvolvimento das suas necessidades individuais e coletivas. Inspirando-nos em uma das teorias a respeito da hierarquia das necessidades humanas (Maslow, 1943), deveríamos nos aventurar a analisar de que forma podemos avançar, então, em um desenvolvimento moral e ético, não nos aprofundando unicamente em necessidades que indiretamente estão vinculadas ao reforço do crescimento econômico, senão naquelas que abririam passo a uma maior coesão social.

Este seria o momento em que as nossas necessidades começam a dar espaço para outras que possibilitem, como consequência, o início de um processo de questionamento sobre a sociedade de que fazemos parte, problematizando temas universais como as desigualdades estruturais e o uso da criatividade. Poderia ser o momento ideal para começar uma espécie de revolução social, algo endêmico e que, como outra teoria, a da “massa crítica”, de John Paul Lederach, em The Moral Imagination: The Art and Soul of Building Peace (2005), nascesse e se espalhasse pelo país. Falo de um processo de apoderamento com o apoio e a iniciativa, mais que essencial, da sociedade civil.

Pensamento crítico

O primeiro é reconhecer que um fator crucial, que causa apatia e desagrega a sociedade brasileira, é a sua falta de pensamento crítico, cuja raiz não caberia agora discutir, e que o apoderamento dessa sociedade para que evolua de um estado de parálise para uma sociedade mais socialmente ativa teria que passar pelo seu desenvolvimento. Como? Focando a educação a que nossos jovens sintam mais prazer com a leitura e que saibam decifrar os truques e segredos de um texto, descobrindo, sozinhos, as suas ambiguidades.

Isso significa também preparar os cidadãos para que enxerguem a importância da informação e de entender os nossos meios de comunicação tradicionais, de contrastar diferentes fontes e não se deixar influenciar facilmente pelo que leem. Que leiam também as suas entrelinhas. Evitar-se, assim, que sejam vítimas da alienação e do desestímulo causados pelos nossos jornais de grande circulação ou pela manipulação da propaganda política. Treinar cidadãos-jornalistas ou não-jornalistas que estão online ajudaria, segundo Ghannam, “a estabelecer [novos] meios de comunicação e medir a exatidão e a autenticidade das notícias e informações”.

Através de uma campanha nacional como voluntários capacitados, estudantes universitários e graduados, ainda considerados privilegiados, poderiam protagonizar uma ação para ensinar crianças e adolescentes a desenvolver o seu pensamento crítico, em um movimento nacional em favor da democracia, mostrando que têm o mundo ao seu alcance através da internet, apresentando alternativas e mostrando que, sim, é possível encontrar opiniões bem argumentadas (e assim mesmo distintas) em blogs, fóruns ou no jornalismo alternativo online.

Incerteza e debilidade

Com a rede, abrem-se as portas a outra forma de aprendizagem que se muta a cada dia e que, se bem usada, torna-se uma fonte inesgotável de referências. É através de um computador que se conecta cada vez mais facilmente um pequeno agricultor do Rio Grande do Sul para falar sobre temas como comércio justo e agricultura familiar com uma ONG angolana ou espanhola, por exemplo, ou com um conterrâneo no Mato Grosso, e onde um estudante poderá debater sobre correntes políticas e movimentos sociais com um jovem ativista social grego e comentar suas conclusões em questão de minutos com amigos em Brasília. Seria ingênuo dizer que essa é uma conclusão recente, mas ainda faz falta universalizar essa noção.

O último passo seria o de se esforçar em convencer o aluno de que ele faz também parte deste mundo digital, para que ele, como consequência, sinta-se parte importante de algo maior. Um mundo em que nós mesmos, cidadãos, nos comprometemos a fiscalizar e, se necessário, denunciar e desafiar a elite econômica e política de nossa cidade, estado ou país. Um mundo em que todos somos repórteres e educadores e onde se possa construir uma sociedade da informação realmente comprometida com a justiça social e a não-violência. Capaz de, como proclamou em 2011, inspirando movimentos populares em Europa e no mundo, Stephane Héssel, um dos redatores da Declaração Universal dos Diretos Humanos, indignar-se.

O sociólogo norueguês Johan Galtung escreveu em Tras la violencia, 3R: reconstrucción, reconciliación, resolución (1998)uma sentença que pode ser interpretada em muitas situações e que, em qualquer ser humano, deveria estar sempre presente, afirmando que a realidade é formada, não por somente uma, mas por milhares de verdades. Já não bastam as políticas para acabar com o analfabetismo ou para que cresça o número de estudantes com diploma do ensino médio no país. Nossas necessidades se estão transformando e entre elas surge a carência de entender essa realidade a que se refere Galtung e o nosso papel nela. E apenas críticos e bem informados poderemos lutar contra a sensação de incerteza e debilidade em relação ao nosso futuro, assumindo um papel crucial na construção dessa democracia real e sólida.

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[Thomás Selistre é jornalista]