Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A ditadura dos mass media e a esfera pública

Não é de hoje que a revista Veja figura entre as piores práticas do jornalismo brasileiro. As reportagens semanais da revista são, por si só, uma aula de antijornalismo para os interessados em conceitos básicos da ética profissional de uma categoria que representa um dos maiores desafios à consolidação da democracia no Brasil. O paradoxo aqui é proposital: se o jornalismo é visto como a salvaguarda da democracia ocidental no conceito iluminista de esfera pública, na prática é essa categoria de “homens bons” que põe um impasse ao projeto iluminista de uma esfera pública plural onde todos os cidadãos comungariam de igual acesso à informação, ao controle da administração pública e em defesa do bem comum. Na modernidade capitalista, a esfera pública midiática seria o lugar, por excelência, da defesa da liberdade de expressão e do livre exercício da autonomia individual e ninguém melhor do que o jornalista para assumir para si a tarefa de defesa de tais princípios.

No seu nascedouro, a imprensa brasileira traz consigo a tradição iluminista europeia. De Evaristo da Veiga a Carlos Larcerda, de Samuel Wainer a Policarpo Junior, o percurso do jornalismo verde-amarelo permite identificar tanto a defesa intransigente da “liberdade” quanto a sua liquidação a varejo nas antessalas do poder. Falta-me competência para fazer uma revisão historiográfica da imprensa nacional. Nelson Werneck Sodré e Venício Lima, entre outros, têm trabalhos desvendado com maestria os meandros do jornalismo brasileiro e os desdobramentos práticos da relação insidiosa entre mídia e Estado.

Fascismo social

Meu objetivo aqui é bem mais modesto: quero chamar a atenção do leitor para a “coerência” entre as práticas criminosas da revista Veja e os fundamentos iluministas do jornalismo ocidental. Isso mesmo, não há nada de contraditório entre o jornalismo criminoso de Veja e os fundamentos iluministas do jornalismo como projeto político-ideológico. Assim como a imprensa burguesa europeia se definiu como o veículo das Luzes a serviço do capitalismo – em contraposição à Idade das Trevas do período medieval –, o fazer jornalístico entre nós nunca serviu aos interesses daqueles tidos como inferiores. Não porque os jornalistas sejam uma espécie sem coração, mas porque a prática jornalística em si traz um defeito de nascença: um projeto de sociedade fundado nas hierarquias sociais e naquilo que Hans Magnus Enzensberger chamou apropriadamente de “indústria da consciência”. O jornalismo nada mais é do que um recorte do tempo e do espaço de acordo com os interesses dos donos dos meios de produção da notícia e a notícia, como Cremilda Medina tem nos lembrado, é mercadoria/commodity que expressa as relações de poder na sociedade.

Levar Roberto Civita aos tribunais e fazer a revista Veja apodrecer nas bancas faria muito bem à democracia brasileira. Mas aí reside o percalço político e a armadilha do nosso tempo no que diz respeito à comunicação de massa no Brasil. A palavra “democracia” é tão carente de sentido e empregada de maneira tão porca pelos representantes dos mass media que a legitimidade do termo reside exatamente na “tolerância” com as práticas criminosas cotidianas atrás das máscaras de outro termo, a “liberdade de expressão”.

O poder dos seus representantes em redefinir a palavra “liberdade” a partir dos seus interesses corporativos põe a mídia brasileira na vanguarda do que poderia ser chamado de ditadura midiática. Neste sentido, o sofisticado discurso dos seus agentes (os gatekeepers) também coloca um desafio extra aos grupos sociais pela democratização dos meios: ninguém em sã consciência iria se opor à liberdade de imprensa, mas como lutar contra as práticas enraizadas em um conceito historicamente ligado ao fascismo social no Brasil? Senão ditadores sanguinários e radicais esquerdistas, qual outro adjetivo para desqualificar os críticos da atividade jornalística e da concentração dos meios de comunicação?

Campos de privilégios

Para além de Veja, jornalões como a Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S.Paulo têm se especializado na cantilena contra qualquer controle público sobre a atividade jornalística. O paradoxo aqui é que a crítica ao controle externo não se sustenta quando contrastada com as relações de subordinação interna nas redações. Roberto Civita tem controle absoluto sobre a atividade jornalística de Policarpo Júnior, assim como Ali Kamel tem dos seus subalternos no Jornal Nacional. Em outras palavras, não é a ameaça à liberdade de imprensa o que tira o sono dos “executivos” da mídia brasileira; é, sim, a ameaça à liberdade de empresa.

As reações dos conglomerados de mídia à Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), por exemplo, realizada durante o governo do ex-presidente Lula da Silva, e ao Plano Nacional de Direitos Humanos, do mesmo governo, foram sintomáticas do campo político-ideológico representado pelos donos dos principais jornais e TVs do país.

Como têm mostrado os movimentos sociais pela democratização dos meios de comunicação, a reação da mídia à Confecom é um retrato fiel da sua ética da conveniência: a esfera pública tão propalada como o espaço da sociedade civil em contraposição a um Estado autoritário não vale como espaço para o debate de ideias e o controle social da mídia e a liberdade de expressão é ressignificado como liberdade dos donos dos meios de produção da notícia.

O que os movimentos sociais pela democratização da mídia precisam considerar, no entanto, é que não há incongruência/incoerência entre a prática jornalística em tais meios e a sua “vocação autoritária” em banir da esfera pública as vozes dissonantes. Simplesmente, a democracia liberal defendida em suas linhas editoriais não rima com a democracia substantiva das ruas. Ou, para ser ainda mais direto, para as redações, palavras como “democracia” e “liberdade” são campos estratégicos de privilégios e de dominação.

Perguntas incômodas

Ainda assim, a relação incestuosa entre a revista Veja e a turma de Goiás tem muito a nos ensinar. Se não é segredo para ninguém que a Veja traz em seu bojo uma história de horrores que vai da Escola Base ao seu envolvimento com empresas do regime apartheid sul-africano, e se é verdade que a revista semanal se tornou uma especialista na criminalização dos movimentos sociais criando uma escola própria de jornalismo lombrosiano – as capas de Veja dão combustíveis ideológicos para o assassinato dos trabalhadores rurais, tidos como “invasores” e “baderneiros”, legitimam a violência policial associando agentes/protagonistas da violência urbana com “terroristas”, sustentam as desigualdades raciais negando a existência do racismo –, há uma série de perguntas óbvias que nem os ministérios da Justiça e das Comunicações, nem o parlamento brasileiro farão porque seus representantes são reféns da meia dúzia de homens do eixo Rio-São Paulo que fariam Rupert Murdoch corarde vergonha.

Aqui vão algumas perguntas que, se respondidas, fariam bem à consolidação da democracia brasileira:

1.Ainda que limitadíssimos, a Constituição de 1988 tem dispositivos legais de regulamentação da comunicação social no país. Os artigos 54, 221, 222, 223 e 224 da Constituição Federal determinam os parâmetros a serem seguidos pelos concessionários públicos de radiodifusão. Ainda assim, os meios gozam de uma liberdade absoluta em relação aos agentes fiscalizadores, embora os casos de violação à Carta Magna estejam aí para qualquer um ver. Para começar: por que o Ministério das Comunicações não cassa as outorgas de rádio e televisão paradeputados e senadores – muitas em nome de laranjas –, uma vez que o artigo 54 da Constituição Federal proíbe parlamentares de “serem proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoas jurídicas de direito público, ou nela exercer função remunerada”?Não seria hora do Ministério Público propor a cassação das outorgas e denunciar os órgãos governamentais de fiscalização por omissão e cumplicidade com tais práticas?

2. O artigo 224 da CF, e posteriormente a Lei no.8389, de 30/12/1991, instituiu o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional que, pelo menos na teoria, deveria acompanhar as decisões do governo federal no que diz respeito às renovações ou cassações de televisão e radiofonia. No entanto, enquanto as rádios comunitárias são sufocadas pelas ações arbitrárias da Polícia Federal, a mídia corporativa goza de licença operacional permanente e automática. Não há publicização dos prazos de renovação, muito menos avaliação dos veículos pelos parlamentares. Os poucos parlamentares que ousaram enfrentar os conglomerados de mídia nacional caíram de joelhos, morreram só. Afinal, alguém saberia dizer onde está o chamado Conselho de Comunicação Social, previsto na Constituição de 1988? O que tais práticas revelam/escondem sobre a natureza da democracia brasileira e a tirania dos meios? A 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), deliberou pela criação de Conselhos de Comunicação Social nos estados brasileiros e não demorou muito para o pânico moral ser instalado nas redações dos vigias da democracia. Não seria a hora do Congresso Nacional seguir a legislação, ouvir a voz das ruas e regulamentar tal proposta?

3. Jornalistas não são deuses e não podem ter salvo-conduto para cometer crimes em nome da liberdade de imprensa. A ética no jornalismo é assunto de interesse de toda a sociedade. Por que o Congresso Nacional cedeu à pressão das entidades patronais e engavetou o projeto que cria o Conselho Federal de Jornalismo proposto pela própria Fenaj? A iniciativa protegeria a categoria do assédio moral dos patrões e colocaria o fazer jornalístico sob o controle público. Jornalistas e sociedade ganhariam com a medida porque ela resgataria o caráter de serviço público da atividade profissional da imprensa;

4. Na prática, são as verbas públicas que acabam financiando os crimes cometidos pela imprensa brasileira. Os governos estaduais e federal não apenas divulgam os produtos das estatais brasileiras nas páginas dos grandes conglomerados como também possuem uma tradição de publicidade governamental nos já concentrados meios de comunicação por razões óbvias. As transferências milionárias entre o governo do estado de São Paulo e a Editora Abril reveladas pelo portal R7, na gestão do ex-governador José Serra, são apenas exemplo de como os cofres públicos abastecem os projetos de fascismo social da grande mídia. No plano federal, os contratos do Ministério da Educação com editoras dos grupos de mídia impressa, para não falar das linhas de crédito do BNDES a emissoras de televisão, desafiam a retórica de um governo supostamente comprometido com o fortalecimento de canais alternativos. Não seria a hora de usar as verbas publicitárias da administração pública a partir de um parâmetro que privilegie o nascimento de veículos de imprensa alternativos e de valorização da pluralidade de ideias?

Ficção jornalística e jornalismo-ficção

O leitor poderá agora lembrar-me que minha crítica à imprensa desemboca na justificativa das ditaduras, na censura e morte de jornalistas. Ave Maria, mangalô três vezes! Essa não é a questão aqui. Mas… O Leviatã que amedronta a imprensa brasileira tem pouco a ver com o Estado autoritário, até porque foi sob a “confortável” sombra da ditadura militar que Globo, Folha de S.Paulo e Veja, para nomear algumas, se transformaram nos atuais negócios de mídia.

Um rápido olhar nos editoriais dos principais jornais do país, às vésperas do golpe militar de 1964, ajuda a entender como o pânico moral dirigido pela mídia contra o governo João Goulart produziuo monstro que mais tarde iria devorar alguns dos seus representantes. Igualmente, o empenho das Organizações Globo, Folha de S.Paulo, Veja e Estadão em eleger Fernando de Collor de Mello em 1989 e empenho semelhante em tentar derrubar o presidente metalúrgico quando das denúncias do mensalão da República, desmistifica a retórica de uma imprensa perseguida pelos tentáculos do poder estatal, como nos quis fazer crer a Folha de S.Paulo e a Veja em série de reportagens sobre “a vocação autoritária” do governo Lula.

A questão aqui não é minimizar/negar a brutalidade do poder autoritário do regime militar ou do Estado Novo, mas colocar em xeque o discurso vitimizante e cínico de uma mídia comprometida até o pescoço com o autoritarismo estatal e o fascismo social.

Em O Triste Fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto conta a história de um funcionário público ultranacionalista, sonhador, que aos poucos perde o encanto com o seu país e a sua gente. Do ufanismo pelo Brasil e da adoração pelo presidente Floriano Peixoto, resta apenas um Policarpo desiludido com a administração pública, chocado com o autoritarismo do Estado, deserdado em um asilo e, finalmente, executado pelas ordens diretas do presidente. Não é esse o fim que queremos para o outro Policarpo – o editor da sucursal de Brasília da revista Veja – embora fosse uma demonstração de apreço pela democracia se o Ministério Público levasse ambos, o jornalista e seu patrão Roberto Civita, aos tribunais.

Ambos, Policarpo Quaresma (ficção jornalística) e Policarpo Júnior (jornalismo-ficção) são, no entanto, caricaturas de projetos autoritários que, no caso do jornalismo, se convencionou chamar pelo pomposo nome de esfera pública midiática. O triste fim de ambos Policarpos poderia ajudar aqueles(as) de nós, jornalistas, comprometidos com um outro projeto de sociedade a aprofundarmos a crise do já moribundo jornalismo brasileiro a ponto de tornarmos sua legitimidade nula e as relações de classe nas redações insustentáveis. Isso implicaria deixarmos a arrogância de lado e reconhecermos o horroroso papel que ocupamos nas mediações entre os interesses dos patrões e o interesse dos grupos sociais subalternizados. De que lado estamos? Aí, na crise sistêmica de credibilidade, e na morte do jornalismo tal qual concebido até aqui, pode residir a esperança de uma prática jornalística para a justiça e a paz.

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[Jaime Amparo Alves é jornalista e doutor em Antropologia Social pela Universidade do Texas, em Austin, e assessor de movimentos sociais em São Paulo]