Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O fruto comum

Tenho vergonha de ser jornalista. Quem lê a oração, em primeira instância pode inferir um sentimentalismo extremo à minha declaração ou ainda vestir a bandeira da classe, colocando-me como um pessimista rabugento e ultrapassado. Nestes tempos de tanta opinião e pouco conteúdo é mais fácil mesmo ignorar o oposto ao que acreditamos.

Faço 26 anos em alguns meses e me formei em jornalismo aos 23. Unindo minhas funções de estagiário às profissionais, atuei em veículos de mídia online (Diário do Campus e Canal da Imprensa), mídia impressa (jornal e revista) e projetos de assessoria de imprensa (para um ciclista e uma empresa). Também andarilhei alguns dias a cidade de Aparecida em busca de fotografias para um foto-documentário não publicado. Faz algum tempo que não atuo na área. A última proposta que recebi foi de um canal de televisão, em cidade no interior de Rondônia. Não tive dúvidas em negar o convite, até porque tenho vergonha de ser jornalista e quando olho para trás fico em dúvida se tomei mesmo a melhor decisão universitária.

Não me oponho à profissão em si. Pelo contrário, sou apaixonado e admirador dessa arte que é sair para a rua, conversar com dois, três ou mais, descrever tudo isso e entregar prontinho, fomentando a crítica, induzindo à reflexão, participando da transformação. É privilégio de poucos esse dom de comunicar, descobrir o conluio, contar histórias daquelas que parecem de cinema – porque antes alguém ensaiou na vida real e, claro, havia um jornalista lá para contar. É privilégio de poucos essa oportunidade, de abrir espaço à verdade.

Retirar as aspas

A minha vergonha em ser jornalista reside mesmo neste ponto: a tal da verdade. Nos veículos onde atuei profissionalmente, parecia existir uma fobia do autêntico, do real. Por isso nós, jornalistas, éramos servos do embuste. “Não é mentira. Só estou omitindo algumas coisas”, justificavam alguns colegas, anestesiados por esse periodismo moco e discrepante. Mas o problema vai muito além do nosso comportamento, enquanto jornalistas. A bem da verdade, vem principalmente de cima, onde parvos empresários (que se alienam na condição de barões da imprensa) determinam aquilo que deve ser contado, como deve ser transmitido e outros absurdos mais.

Como no fim de 2011, quando estive na casa de uma empresária em Porto Velho. Na ocasião, eu ouvia uma proposta profissional para atuar como assessor de imprensa na sua agência de comunicação, na qual figurava uma carta de clientes interessante, incluída aí a empreiteira que constrói uma grande usina hidrelétrica no estado. Em tom didático, ela resumiu o ofício. “Nós falamos o que o cliente determina. Vou te dar um exemplo. Morrem muitas pessoas nessa construção, mas a imprensa não descobre (até porque os jornalistas, aqui em Rondônia, são muito acomodados. Eles vivem de release). E é claro que a empresa não quer que saibam que operários estão morrendo. Então, quando isso acontecer, não falamos nada para ninguém. Deixamos um release pronto e se alguém aparecer perguntando, você diz que não sabe de nada. Se três ou mais perguntarem, é sinal que vazou. Aí você solta esse release daquele jeito: a empresa lamenta o ocorrido, vai dar todo o apoio à família e essas coisas.”

Também em Rondônia, atuei durante curto espaço de tempo num jornal que se diz “a serviço da comunidade” e ganhei a pauta: prefeitura vai asfaltar avenida no bairro Primavera. Passei pelo local, conversei com alguns moradores e comerciantes e voltei com pressa à redação, na dinâmica normal de um jornalista. Antes de rodar o jornal, veio o proprietário do veículo (cujo nome não consta no expediente [?]) mandando retirar as aspas de um dos comerciantes entrevistados. O problema? “Ele está desafiando a prefeitura, dizendo duvidar que desta vez o asfalto vai durar. Está afrontando o trabalho realizado.” Cabe uma colocação: a mesma prensa que roda o jornal prepara também o Diário Oficial da prefeitura.

Vergonha do jornalismo

São essas relações vexatórias que me fazem ter vergonha de ser jornalista. E ainda pior é perceber que nem mesmo naqueles veículos chamados grandes há alguma chance de um jornalismo de vanguarda, mais próximo do romantismo utópico que cerceia o ofício. Antes, era esse um argumento que me acalentava. Quem sabe, longe das vielas marginais, onde rádios, canais e impressos ficam de mãos atadas ante as migalhas do poder público, haja alguma chance de fazer um trabalho estimulante (e relevante).

Ledo engano. Toda relevância de Veja deve ser reunir seus editores uma vez por semana e determinar o que é proveitoso para ser publicado e o que deve ser evitado, omitido. Toda relevância da Record é retalhar aqueles que se voltam contra o pequeno império do bispo mimado. Toda relevância da Globo é trabalhar por manter sua anarquia comunicacional e apoiar alguns súditos, como a Folha de S.Paulo, que, há muito tempo, deixou de ser o jornal combativo e relevante da ditadura. E não. Não vou falar do Estado, da Época, da IstoÉ, da CartaCapital. Como se diz no popular, é chover no molhado.

Entendo que o problema é só um, seja no âmbito dos profissionais e das corporações (e inclui-se aqui também as academias, quase uma formalidade ante a necessidade que temos). Estamos numa séria e profunda crise de valores. Jornalistas dobram-se ante os chefes para manter suas carreiras. Empresários dobram-se ante a política para manter seus veículos (e influência). Políticos dobram-se ante a corrupção para não perder o costume. E vive-se esta falta sufocante de princípios, onde o homem deveria ser homem apenas pela satisfação de ser, ao menos, honesto (e digo aqui no sentido de sê-lo consigo mesmo).

Qual a solução diante do quadro? Confesso que não sei por que cada vez mais me sinto distante dessa classe, desse meio. E muitos vão dizer que a minha juventude e minha falta de vivência é que influencia minha visão pejorativa e depreciativa da profissão. Que os calos do tempo fariam-me acostumar com esta triste realidade. Talvez. Mas talvez a resposta seja essa mesma. Ter vergonha do jornalismo e seu policarpo [policarpo (botânica): que tem ou produz muitos frutos].

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[Raphael Vaz é jornalista, Cacoal, RO]