A história da Filosofia foi largamente banhada de sangue e jamais perdeu um certo odor de tortura e crueldade. É necessário reconhecer quanto horror há no esclarecimento, quando virado pelo avesso. Etnocentrismo e totalitarismo epistêmico existem desde o início da Filosofia na Grécia antiga. O que me motivou à discussão desse tema foi o anúncio do lançamento do livro Heidegger: The Introduction of Nazism Into Philosophy, de Emmanuel Faye, publicado originalmente em francês, em 2005, com o título Heidegger, l'introduction du nazisme dans la philosophie.
Faye, em busca de holofotes, propõe que a obra de Martin Heidegger, um dos mais importantes filósofos do século 20, seja abolida das bibliotecas universitárias e dos cursos de filosofia. Livros como Ser e Tempo ou Introdução à Metafísica, por exemplo, poderiam ser estudados, no melhor dos casos, sob a categoria “História do nazismo”.
A filiação do filósofo alemão ao partido nazista é pública e notória. Não se pode negar (como fazem alguns de seus fãs) que ele foi reitor da Universidade de Freiburg durante 10 meses, no início do governo hitlerista, entre 1933 e 1934. E um estudo mais atento de sua obra mostra aproximações com a doutrina de Hitler, como por exemplo, o nacionalismo germanófilo e conservador. Em contrapartida, Heidegger apresenta diversas críticas ao nazi way of life – a questão da técnica, por exemplo. Mas os detalhes da obra heideggeriana não poderão ser discutidos aqui.
Censura, idolatria, livre pensar
O que me interessa discutir aqui é a censura proposta por Faye. Sou contra qualquer tipo de censura. Todavia, reconheço que a postura radical de abolir a obra de Heidegger dos currículos e bibliotecas escolares e universitárias pode vir a ser defendida com bons argumentos, desde que os defensores de tal atitude drástica sejam coerentes a ponto de ampliar a censura a outros filósofos, levando-a à suas últimas consequências. Enquanto Heidegger apostou em Hitler, Platão apostou no tirano Dionísio I, Aristóteles em Alexandre Magno, Kant no Barão de Zedlitz, Hegel em Napoleão… Durante toda a história da Filosofia, o avesso da razão esclarecida foi sangue, morte e violência.
Immanuel Kant, por exemplo, um dos filósofos mais estudados nas áreas de Ética e Filosofia do Direito, afirmou que “os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo” (Observações sobre o sentimento do belo e do sublime). Faye e seus seguidores vão abolir as obras de Kant por causa do seu racismo? Muitos autores europeus se compreendem como superiores e mais evoluídos em relação aos outros povos, como nós, latino-americanos, que seríamos bárbaros, imaturos e inferiores. Foi com essa ideologia que os colonizadores justificaram a invasão da América: retirar os selvagens da barbárie, civilizando-os através de uma “ação pedagógica”, com educação moral e religiosa. O sofrimento seria o preço pago pela modernização.
Por essas e outras, a ação de filosofar demanda uma reflexão sobre as limitações da filosofia europeia. Diante dessa dificuldade efetiva, predomina a glosa dos clássicos e formam-se verdadeiros fã-clubes de filósofos. Afinal, papagaiar é mais fácil do que pensar. Estou farto de filosofias que não levam a coisa nenhuma. E o filosofar não prescinde do confronto com a força potencializadora da tradição, mesmo que esta seja etnocêntrica e totalitária. Ao discutir questões longamente amadurecidas, nos alimentamos com a experiência acumulada pelas gerações.
Entre a censura e a idolatria, eu escolho o livre pensar.
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[Vitor Cei é jornalista, pesquisador e professor de Filosofia e Literatura, Belo Horizonte, MG]