Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Extensão e limites da relação mídia e política

A questão da democracia brasileira está novamente presente nas capas dos jornais e nos debates promovidos pelas emissoras de rádio, televisão e internet. E isso porque circulou pelo país uma foto de Lula e Maluf que causou grande polêmica nos órgãos vitais da República. Segundo a pauta da imprensa brasileira, do Caburaí ao Chuí, esse foi um dos principais fatos da semana. A foto simboliza a aliança entre PT (Partido dos Trabalhadores) e PP (Partido Progressista) para concorrer a prefeitura de São Paulo. Mas o que essa aliança entre partidos políticos representa para a política brasileira?

Para alguns órgãos de imprensa não se trata somente da relação formal entre duas figuras públicas. Segundo eles, a aliança PT e PP para concorrer à prefeitura de São Paulo corresponde ao descumprimento da regra de compor e recompor a estrutura de como funciona a política nos bastidores de uma tradição determinada por antagonismos. Entretanto, não ousaremos dizer que daqui para frente os membros do PP devem estar convivendo na mais profunda aliança com os petistas e/ou vice-versa; nem acreditamos que Lula e/ou Maluf tenham o poder, a “varinha mágica”, para fazer isso.

Notemos, fazendo uma leitura crítica da aliança entre PT e PP para concorrer à prefeitura de São Paulo, que estamos presenciando um acordo provido da convivência democrática. Antes, é importante esclarecer que não se trata, em absoluto, de definir simplesmente um método específico para todas as alianças partidárias, mas sim, de fazer justiça a uma ideia inteiramente democrática. E, segundo, da mesma forma que os comentaristas de política pregam que querem o melhor para o país e denunciam com afinco as mazelas da República, também deveriam aceitar que a democracia cria e necessita de espaços que possibilitem a convergência entre os partidos e os políticos de uma maneira geral. O que não implica que se aceite a corrupção como método de governo.

O papel da imprensa

Uma coisa é claríssima na democracia representativa, tão clara que a ninguém é permitido ser cego a tal respeito. É o fato de a democracia exigir como condição de existência que os entes que a compõem, ou seja, todos os seus representantes e representados, partícipes e não partícipes, dialoguem com o objetivo de encontrar as soluções consideradas justas para os problemas em comum, isto é, aqueles que são considerados problemas de todos.

Sem dúvida, pode-se muito bem admitir que os membros de uma República democrática não são obrigados a concordar com as soluções apresentadas por seus representantes e a estes que discordam cabe o direito de buscar, democraticamente, uma outra solução que lhe seja mais conveniente. É o caso, por exemplo, da deputada Luiza Erundina, que não concordou com a aliança entre PT e PP e retirou o seu nome da chapa.

Dando mais um passo, cabe perguntar: qual o papel da imprensa diante do anúncio das alianças entre os partidos políticos nos períodos pré-eleitorais? A princípio poderíamos pensar que tal questão não tem sentido e que a imprensa, através de seus comentaristas e colunistas, deve expor a sua opinião quanto às alianças políticas. Quem se serve dessa opinião é livre para tê-la e esperamos que continue sendo assim.

No RS, imprensa não se mostrou escandalizada

Mas, pela mesma “razão democrática” que é possível que se seja livre para expor uma opinião, também há de se promover a isonomia no tratamento das informações. O que aqui podemos qualificar de “razão democrática” é o ponto central do processo pelo qual é errado praticar distinção na divulgação das alianças entre os partidos políticos. A democracia, através da instituição jurídica tem, então, como tarefa nos conduzir pela equidade a uma solução mais consoante à justiça.

Para elucidar que nem sempre a isonomia tem sido levada em conta pelos órgãos de imprensa em relação aos partidos políticos, vamos utilizar o exemplo do Rio Grande do Sul (RS). Recentemente, um apresentador e comentarista de política num de seus programas na televisão acusava Lula e Maluf de estarem “traindo” seus colegas. Ora, já falamos do perigo da interpretação nos nossos artigos, porém, nesse caso, a afirmação do apresentador merece uma reflexão se considerarmos por um instante que no RS o PP estava cogitando aliança com o PCdoB (Partido Comunista do Brasil) para concorrer à prefeitura de Porto Alegre e nenhum apresentador ou comentarista disse que a senadora Ana Amélia, principal articuladora de uma possível aliança entre PP e PCdoB, estava “traindo” seus colegas.

Não queremos igualar os fatos e nem julgar a atuação de nenhuma das partes, mas somos obrigados pela lógica a colocar a situação de Porto Alegre no mesmo patamar de diálogo que travávamos com relação à divulgação da aliança entre PT e PP para concorrer à prefeitura de São Paulo. É claro que não se trata de uma situação fundamentalmente igual, mas no RS a imprensa em nenhum momento se manifestou escandalizada com essa possível aliança entre PP e PCdoB.

“Psicologia política”

Parece óbvio, porém – mas um óbvio “descuidado” – que a repercussão negativa dada pela imprensa à foto de Lula pedindo o apoio de Maluf para a campanha de Haddad se deva ao fato de estarem frente a frente dois “inimigos” políticos que, inclusive, trocaram várias ofensas durante suas jornadas políticas. A imprensa questiona: como é possível essa aliança? E acusa, tanto Lula quanto Maluf, de incoerência.

Analisando psicologicamente como alguns apresentadores e comentaristas de política estão julgando a aliança entre PT e PP em São Paulo, podemos presumir que estes consideram que o “normal”, ou melhor, o justo, seria manter os antagonismos para sempre, isto é, “se eu te odeio, eu te odeio pra sempre e tenho que odiar toda a tua família e tudo que você faz, não posso concordar com nada que você pensa”. Que me perdoem os comentaristas e apresentadores que pensem dessa forma, mas numa análise psicológica superficial essa parece ser a lógica impositiva de alguns órgãos da imprensa brasileira.

Em seguida apresentaremos alguns conceitos de Pontes de Miranda (ver aqui) sobre a relação psicologia e política. Em 1913, o grande jurista brasileiro Pontes de Miranda publicava “Caracteres psychologicos dos estadistas”, artigo célebre guardado no acervo de Ruy Barbosa que ajudou a revelar e a consagrar os meandros da relação que existe entre a psicologia e a política. O artigo oferece uma apresentação geral de como a psicologia era vista em meados do século 20. Em uma caracterização superficial, podemos constatar que a psicologia era percebida dentro da esfera religiosa. Contudo, a própria evolução histórica do ser humano influenciou na mudança de objeto da experiência psicológica. Essa alteração trouxe valor semântico à expressão “psicologia política”, pois as pessoas adquiriram consciência de seu valor e os povos, por sua vez, criaram sentimentos e comportamentos analisáveis coletivamente.

Expressão de caráter

Não há dúvida de que a psicologia ganhou forma e força no século 20 e foi a partir da revolução de conceitos e descobertas que uma preocupação em especial passou a fazer parte da vida dos brasileiros e brasileiras: a emancipação moral e política, no entanto, segundo o nobre autor, essa emancipação só seria possível tendo bem claro o perfil dos representantes públicos brasileiros.

Nas palavras de Pontes de Miranda:

“O político deve ser – e ahi está, com effeito, a maior virtude da politica positiva – um estudioso e um director de espiritos: deve estudar, como psychologo, todas as camadas sociaes e toda a matéria ‘espiritual’ da vida, fomentar ou crear ideaes de ordem puramente política e social, e interpretar a opinião pública no que ela offerece de mais interessante e real, isto é, no que representa a reacção dos interesses individuaes, as decisões aos projectos e as negligências do governo” (“Caracteres psycologicos dos estadistas”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 23 maio 1913).

Quanto mais esmiuçamos a psicologia política de Pontes de Miranda maior é a nossa admiração pelo seu empenho em defender suas ideias e, atualmente, não são raras às vezes nas quais nos deparamos com algumas das preocupações elencadas nas suas obras. Por exemplo, o que Pontes de Miranda escreve sobre a renúncia dos brasileiros e brasileiras às questões políticas; Para ele, há um fenômeno onde a lógica da política tradicional emana como raios que se projetam em forma de uma extraordinária mazela que esteriliza qualquer possibilidade de indignação e frustra qualquer tentativa de reação por parte brasileiros e brasileiras.

Para o ilustre autor só há uma solução: utilizar contra o fatalismo das coisas preestabelecidas a eficácia experimentada de certas ações: a coragem. Para Pontes de Miranda, a coragem é a melhor expressão de caráter, poder e transformação social.

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[Marlos Mello é psicólogo, Porto Alegre, RS]