O movimento integralista organizou-se na década de 1930 enquanto partido político, mas pouco tempo depois perdeu a possibilidade de atuar na legalidade: a ditadura instalada pelo golpe desfechado por Getúlio Vargas, em novembro de 1937, cancelou os registros dos partidos políticos, entre eles a Ação Integralista Brasileira (AIB). Os integralistas, então, conspiraram contra o Estado Novo e tentaram derrubá-lo no que ficou conhecido como putsch integralista de maio de 1938. A intentona fracassou e, a partir daí, de maneira aberta, o Estado Novo teve o integralismo como inimigo.
O Estado Novo foi ator privilegiado no processo de formação da memória social, em especial por via dos jornais de grande circulação, dado que ao estabelecer controle sobre a imprensa foi capaz de selecionar representações do passado que foram disponibilizadas a grande número de indivíduos, os quais incorporaram essas representações como se fossem suas. Assim, a partir da imprensa submetida pela ditadura, construiu-se uma narrativa bem elaborada acerca do integralismo e fixaram-se as ideias-imagens que marcaram as representações mais compartilhadas relativas ao movimento dos camisas-verdes (os integralistas eram assim conhecidos por usarem uma camisa verde como uniforme): "fascista/nazista", "quinta-coluna", "totalitário", "patético" e "risível" tornaram-se características dos integralistas presentes na memória social.
Circulação crescente
A partir de 1945, com a democratização, os integralistas, ao se rearticularem visando à reinserção no espaço político, tiveram que enfrentar o passado, ou os usos que dele se faziam. As representações tornadas públicas durante o Estado Novo, desmerecendo o integralismo, eram retomadas em 1945 e faziam do passado uma ameaça aos integralistas: na segunda metade da década de 1940, os seus rivais políticos os expunham como acusação e/ou chacota, dificultando os passos integralistas para a sua reordenação .
Neste movimento de atualização do veto à memória integralista, cujo intuito último era impedir o retorno dos ex-camisas-verdes ao espaço político, a grande mídia desempenhou papel relevante. Abordaremos neste breve artigo a ação da revista O Cruzeiro diante da rearticulação política dos integralistas no pós-guerra.
A revista O Cruzeiro foi lançada no dia 10 de dezembro de 1928 (a princípio denominada apenas Cruzeiro) pela rede Diários Associados, do jornalista e empresário Assis Chateaubriand. Às vésperas de seu lançamento, no final da tarde de 5 de dezembro de 1928, na Avenida Rio Branco, milhares de folhetos foram lançados do alto dos prédios anunciando o aparecimento da revista. À espalhafatosa propaganda de lançamento, seguiu o esforço para fazer da revista a primeira de alcance nacional nos espaços urbanos: caminhões, barcos, trens e um avião bimotor foram usados na sua distribuição para que ela alcançasse simultaneamente, além de todas as capitais, também as cidades tidas como as mais importantes. Seu primeiro número anunciava a tiragem de 50 mil exemplares e saiu com 64 páginas, impressas em papel couché e repletas de fotografias, cores e anúncios publicitários. No final do ano de 1930, a revista, já trazendo o artigo “O” que ressaltava o substantivo Cruzeiro, chegava à tiragem de 80 mil exemplares semanais, conforme fontes da própria publicação.
Os motivos do fracasso
Na segunda metade dos anos de 1940, O Cruzeiro era a revista de maior circulação no país. Em sua redação encontrava-se um jornalista que vinha tendo enorme destaque na imprensa brasileira, David Nasser. Entre novembro de 1946 e janeiro de 1947 (a revista anunciava agora tiragem de 250 mil exemplares!), Nasser publicou em seis edições, como furo jornalístico, uma série de matérias intitulada "Eu acuso!". Esta série abordava principalmente a descrição do putsch de 11 de maio de 1938 por um de seus mais ativos participantes: Severo Fournier (militar e homem de confiança dos liberais paulistas), que fora encarregado por Belmiro Valverde (chefe político dos integralistas na Guanabara) de organizar e comandar militarmente o golpe contra a ditadura Vargas.
Com o trágico desfecho do golpe, Severo Fournier refugiou-se na embaixada italiana mas, depois de breve incidente diplomático, acabou se entregando às autoridades brasileiras. Permaneceu na prisão de 1938 até outubro de 1945. Morreu em agosto de 1946. Só depois de sua morte, Nasser publicou a série "Eu acuso!", a qual se centrava na transcrição das cartas que Fournier teria escrito, da prisão, ao seu pai.
Severo Fournier teria, então, relatado os episódios referentes ao golpe, como o assalto ao Palácio da Guanabara, comandado por ele. Acerca da feitura do plano para a ação de 11 de maio, Fournier disse que aquele fora elaborado com esmero e que contou com “o maior fator com que possa contar um movimento revolucionário – a surpresa” (NASSER, 1947, p.100-101) [a série "Eu acuso!" foi, pouco depois, publicada como livro. Trata-se de NASSER, David. A revolução dos covardes – diário secreto de Severo Fournier, reportagens políticas e ordens da censura do ditador. 2ª edição. Rio de Janeiro, Gráfica O Cruzeiro, 1947].
Fournier contava que a surpresa deu-se apesar da movimentação de cerca de dois mil integralistas deslocando-se pela cidade. Mas, embora contassem com um plano bem elaborado, com a organização integralista, com centenas de seus militantes dispostos a tal aventura e com o elemento surpresa, a ação fracassou completamente, como Fournier expôs em seu diário: “Basta, para fazer-se uma ideia da enormidade do desastre, citar que, das setenta e muitas missões de que se compunha o plano, na maioria simples e sem o menor perigo, apenas puderam tomar certo caráter de execução as seguintes: assalto ao Guanabara, tomada do Ministério da Marinha, prisão de um coronel, e essas, assim mesmo, com ressalvas” (idem, p.101). Como entender os motivos que levaram ao fracasso? Essa era a pergunta que não só Fournier se fazia, como se esforçava por responder a ela em seu diário.
“Choros lamentosos e gestos de desespero”
Para Fournier, na concretização do plano faltou toda sorte de dignidade e de coragem aos integralistas e que “o que não se podia fazer era introduzir vergonha, virilidade e caráter nesses homens. Isso estava fora de meu alcance” (idem, p.100). Para ele, a surpresa absoluta deveria ter servido de estímulo para a ação dos integralistas, mas não foi o que se sucedeu. E ele novamente se perguntava a que se deveu tamanho desastre, no que ensaiou responder: “Medo? Falta de preparo? Falta de dignidade? Falta de honradez? Falta de caráter? Ou todos êsses fatores atuando ao mesmo tempo?” (idem, p.104). E a razão para o fracasso relacionava-se à natureza daqueles homens, pois era público e notório (idem, p. 50) o fato de ser ela absolutamente reprovável. Se a natureza reprovável dos integralistas era pública e notória era porque ela estava disponível na memória social e a partir desta era possível ver o perfil daqueles homens integralistas: homens sem caráter, sem honra, sem dignidade e sem coragem. Isso teria conduzido o golpe ao fracasso, pois que, com homens dessa natureza, não haveria outro resultado possível para aquela ação.
Suas cartas-diário prosseguiam descrevendo ações do dia 11 de maio de 1938, quando do golpe. Na maior parte dos relatos, insistiu nas características dos homens integralistas que, para ele, “não, não são homens, são monturos de indignidade, são monstros em excrescência pútrida” (idem, p.109). No diário, quase tudo que concernia ao integralismo era atacado. Seu chefe, Plínio Salgado, é “cabuletê” e “pretenso ditador” (idem, p. 93); Loureiro Junior, genro de Salgado, era um oportunista que “casou-se com a filha do sr. Salgado quando ele entrou em moda” (idem, p.107). E o segundo homem na hierarquia da AIB, Gustavo Barroso, ao tocar na questão do judaísmo internacional, aparecia como demagogo, racista e ignorante, como se lia no seu diário: “E o judaísmo internacional do integralismo deixa de ser problema financeiro internacional para ser simplesmente de raça. E sôbre êsses problemas e, com a terminologia pomposa dos grandes demagogos, fala o mais ignorante dos camisas-verdes” (idem, p.107).
E insistia na sua avaliação do integralismo que, segundo ele, “como meio, era deteriorante” (idem, p.107), lamentando pela sorte do país que aplaudisse um “partido que, tendo tudo o mais nefasto, tenha como única coisa aproveitável ensinado seus filhos a cantar-lhe hinos evocatórios de glórias problemáticas” (idem, p. 107). Quanto aos instantes imediatamente anteriores à partida para o assalto ao Palácio da Guanabara, disse Fournier: “As cenas ali desenroladas, nestes minutos finais, foram dessas impressionantes […]” (idem, p.123). As cenas impressionavam-no porque aqueles homens eram também bisonhos: “[…] Não titubiei em, às 23: 30 horas (o movimento deveria iniciar-se à 1 hora da madrugada), dar ordens para que metessem nesses bisonhos patriotas os uniformes de fuzileiros navais […]” (idem, p.123). Contudo, mais ainda porque tudo era demasiadamente ridículo: “[…] Metidos em fardas que, em uns, sobravam-lhes as mangas do casaco; em outros, as calças ficavam-lhes nas canelas […]” (idem, p.124). Somava-se ao patético da situação, o medo excessivo daqueles homens na hora de partir para a ação, expresso em “choros lamentosos e gestos de desespero, para não seguirem” (idem, p. 124). A ênfase na covardia dos integralistas era ressaltada ainda no relato acerca dos instantes imediatamente anteriores à partida: “ante o precedente aberto para os anciães, todos eram velhos; todos aleijados; todos, doentes […]”(idem, p. 124).
Memória social
Desse modo, a narrativa de Severo Fournier, ao permitir que os outros vissem o golpe de 1938 através de seu olhar, tinha forte apelo veritativo. Tal narrativa era publicada como o relato de quem conhecia os fatos que se desenrolaram na ocasião e conhecia-os porque os vira e, assim, ele fazia saber aos que nada viram por si próprios o que ele, narrador, sabia. Tal apelo veritativo procedia igualmente do fato de que havia uma memória social capaz de articular um conjunto de pressupostos e representações sobre o Integralismo em que os integralistas eram vistos como covardes, risíveis, patéticos, fascistas e golpistas. Assim, para além do apelo veritativo de toda testemunha, Fournier expunha adjetivações já presentes na memória social e, portanto, facilmente reconhecíveis, tornando o seu depoimento ainda mais confiável.
Deste modo, para o esforço de veto à reorganização do integralismo no pós-guerra, a publicação do Diário secreto de Severo Fournier na revista O Cruzeiro foi de importância considerável: no Diário de Fournier, o integralismo foi atacado como um todo, atingindo seus principais quadros em sua honra, afetando a reputação do movimento. Repetia-se o que a grande imprensa fez em diversas ocasiões durante a ditadura estadonovista. Nesse momento, a imprensa brasileira estava diante de forte censura exercida pelos órgãos de repressão e aos integralistas, no que concernia à cena pública, não restava alternativa a não ser a de permanecer em silêncio. Os discursos ecoavam em uníssono, apontando que os integralistas eram fascistas, patéticos, covardes etc., forjando memória social que estabelecia/reforçava o repúdio e a desconfiança em relação aos integralistas.
Assim, supomos que tal memória social, recomposta agora também nas narrativas publicadas pelo jornalista David Nasser nas páginas de O Cruzeiro, em tudo contribuía para privar os integralistas de capital político, comprometendo o desempenho do movimento dos ex-camisas verdes no período democrático.
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[Rogério Lustosa Victor é doutorando em História pela UFG]