Existe uma associação fechada de repórteres esportivos que escrevem sobre as Olimpíadas na imprensa britânica. É a chamada “Associação dos Jornalistas Olímpicos”. Passe os olhos pela lista de membros e você reconhecerá muitos daqueles que assinam as sessões de esporte nos jornais, rádio, televisão e nos meios online, como os jornalistas Mihir Bose, David Bond, Paul Kelso e Ashling O’Connor. São pessoas que cobrem não só as Olimpíadas, mas também a FIFA e outras federações esportivas internacionais.
Mas observe a lista de membros de 2009, no ano anterior às últimas Olimpíadas de Inverno, em Vancouver. Espere um minuto: ali está Jon Tibbs. E ele não é jornalista. É um marqueteiro da empresa Bell Pottinger and Hill & Knowlton, cuja consultoria – que tem as mesmas iniciais do dono, JTA – oferece “construção de marca estratégica” e “assessoria de comunicação” para “clientes no movimento desportivo internacional”.
Tibbs trabalhou durante a disputa para sediar as Olimpíadas nas cidades de Atenas, Pequim e Sochi. Além disso, ajudou a recuperar reputações depois do escândalo sexual e de tentativas de suborno em Salt Lake City, nos EUA. Dez membros do Comitê Internacional foram demitidos ou se demitiram. Ele também foi um verdadeiro colete a prova de balas para a família Glazer, dona do time de futebol Manchester United.
Mas espere. O nome de Charles Battle também está ali. E ele também não é jornalista. É um advogado que se tornou consultor, cuja maleta recheada de milhares de dólares viajou do Caribe à Florida para ganhar os votos dos membros do Comitê Olímpico Internacional (COI) para a cidade de Atlanta durante a disputa para ser a sede das Olimpíadas de 1996.
Por fim, ali também está o nome de John Boulter, ex-atleta britânico na corrida de 800 metros, antigo membro da equipe de relações internacionais da marca Adidas e membro do pelotão de Lorde Coe para persuadir mentes e corações em prol das Olimpíadas de Londres em 2012, e também o nome de Jean-Claude Schupp, outro membro da equipe da Adidas que, desde os anos 70, intervém nas eleições para lideranças do Comitê Olímpico, da FIFA e da Federação Internacional de Atletismo.
O que diabos essas pessoas estavam fazendo no clube de repórteres? O que aconteceu com a independência jornalística que nos mantém distantes das pessoas sobre as quais escrevemos? A lista de membros diz bastante sobre o que está errado no jornalismo esportivo: a falta de escrutínio e ceticismo é a sua marca principal.
Eu já escrevi várias vezes sobre esses marqueteiros, mas mesmo assim eles só foram eliminados depois que o repórter investigativo alemão Jens Weinreich publicou reportagens sobre isso e fez um tremendo alarde. Mesmo assim, algumas daquelas logomarcas hoje enfeitam a capa do manual da associação voltada a jornalistas esportivos.
Quem mais estava no clube antes de Jens resolver denunciar essa proximidade? Estava Sead Dizdarevic, morador de New Jersey, que admitiu em 1999, para agentes do FBI, fornecer sacolas de dinheiro para influenciar o voto de membros do COI sobre a sede das Olimpíadas de Inverno de 2002. Sua empresa, a Jet Set Sports, esteve por trás da candidatura de Utah.
Ele queria receber a franquia da hospitalidade olímpica, e conseguiu – para Utah, para Pequim, para os jogos de Vancouver e, novamente, para a cidade de Londres este ano. Em fevereiro, o programa Dispatches, da TV inglesa, filmou com uma câmera escondida um porta-voz da Jet Set oferecendo acesso não autorizado às rotas de tráfego restritas a atletas durante os Jogos Olímpicos. A logomarca da empresa Jet Set também estampa o manual do clube de jornalistas olímpicos.
Mais de US$ 100 milhões em subornos
Jean-Marie Weber era outro membro do clube de repórteres. Weber era o “homem da mala” da empresa de marketing esportivo ISL e liberou mais de US$ 100 milhões em subornos para dirigentes esportivos em troca de contratos de marketing multibilionários para as Olimpíadas e para a Copa do Mundo.
Ainda assim, ele continua sendo membro da Associação de Jornalistas Olímpicos um ano após admitir na corte Suíça haver pago propina em troca de contratos. Afirma-se que um desses subornos, de US$ 1 milhão, foi para o ex- presidente da FIFA, João Havelange. Depois de um programa que eu fiz para a BBC, o suborno foi investigado pela comissão de ética do Comitê Olímpico Internacional COI. Havelange se demitiu do COI apressadamente no ano passado.
Há outro nome que merece ser citado. Mike Lee foi eleito profissional de relações públicas do ano durante a semana do RP em 2005. Ele trabalhou para o Partido Trabalhista britânico, para a Premier League e para a União das Federações Europeias de Futebol antes de se juntar a Lorde Coe na preparação das Olimpíadas deste ano.
Aproveitando o sucesso de Londres, abriu a empresa Comunicações Vero, e ajudou a ganhar o Jogos Olímpicos de 2016 para o Rio de Janeiro e os Jogos de Inverno de 2018 para Pyeongchang, na Coréia do Sul.
A missão de Mike é, segundo suas próprias palavras, “contar histórias mais convincentes, criativas e verdadeiras para ajudar a vitória dos nossos clientes, seja qual for a sua meta”.
Em um livro chamado A corrida para as Olimpíadas de 2012, Mike é descrito assim: “Dentro do esporte ele tornou-se reconhecido como um operador leal e confiável que estava preparado para sujar as mãos e trabalhar incansavelmente para promover e defender aqueles que ele representava”.
O livro é favorável a Mike, que é apontado como autor. Mas na verdade ele foi escrito pelos ghostwriters David Bond, agora o editor de esportes da BBC, e Warner Adrian, correspondente da BBC de Londres nas Olimpíadas.
Mike Lee estava na folha de pagamento da proposta do Catar para sediar a Copa do Mundo de 2022.
Comprando Batistuta
Em janeiro de 2010, nove meses antes da votação, ele foi responsável por levar o ex-astro argentino e “embaixador” do Catar, Gabriel Batistuta, para Londres, em uma breve visita promocional.
Na ocasião a BBC Sport entrevistou Batistuta. Havia um profundo ceticismo entre os fãs de futebol e dirigentes sobre realização da Copa do Mundo no calor escaldante do Catar. “Tenho certeza de que o clima não será um problema”, insistiu Batistuta, “Eu joguei lá por dois anos, joguei algumas partidas no calor e era possível”.
“Atualmente, há estádios que possuem um sistema de refrigeração e você pode escolher a temperatura na qual você quer jogar”, explicou. “Então, como você pode imaginar, dentro de 10 anos a tecnologia terá melhorado a tal ponto que cada um dos estádios que serão usados na Copa, terá esse sistema.”
Batistuta estava vendendo a difícil oferta do Catar, mas ele não era uma fonte independente e imparcial – estava recebendo milhões de dólares para reproduzir o discurso do país.
Um ano depois, na Câmara britânica, durante a audiência do comitê de seleção, o congressista Damian Collins perguntou a Mike Lee: “Sete milhões de dólares foram gastos na contratação de Gabriel Batistuta?” Lee respondeu: “Isso nunca foi provado ou justificado, mas estou ciente do relatório que diz isso. Acho que é verdade”.
Mudando a manchete da poderosa BBC
Na época, a manchete do site da BBC, “Batistuta apoia candidatura da Inglaterra 2018” não agradou ao governo do Catar.
O executivo-chefe da candidatura, Hassan al-Thawadi, sentado em seu escritório no 26º andar do Edifício do Comitê Olímpico do Catar, em West Bay, na capital Doha, leu e odiou. “Ele estava gritando”, relatou um funcionário que estava no escritório no momento.
Hassan enviou uma mensagem para Mike Lee: alterar a manchete. Normalmente, quem não gosta das reportagens da BBC pode preencher um formulário online ou ligar para um telefone dedicado a queixas. A resposta é dada em até dez dias.
Mas para Mike Lee, marido da ex-diretora da BBC Heather Rabbatts, há um jeito mais fácil.
Barbara Slater, diretora de esportes da BBC, confirmou por email que o “Sr. Lee entrou em contato com a BBC logo após a publicação do artigo no site da BBC Esportes. Nós não temos um relato escrito da conversa, mas a jornalista em questão lembra que o Sr. Lee estava descontente com a reportagem”.
Poucos minutos depois um dos colegas de Mike Lee, John Zerafa, mandou um e-mail para Doha, triunfante: “Conseguimos mudar… O cabeçalho é muito melhor do que pensamos. Agora a BBC não mudará mais”.
A nova manchete era “Batistuta quer evitar disputa entre Catar e Inglaterra para a Copa de 2022”. O título original continuou apenas como link na ferramenta de pesquisa da BBC.
“Os jornalistas envolvidos com a história não têm registro ou lembrança de mudar o título”, explicou por email a Sra. Slater. “É uma prática comum ter manchetes um pouco diferentes entre a página inicial e a reportagem em si –Há mais espaço para personagens neste último. As duas manchetes são compatíveis entre si e refletem com precisão o conteúdo da entrevista com o Sr. Batistuta”.
No email, ela prossegue dizendo que “a entrevista com o Sr. Batistuta foi condizente com a estratégia editorial da BBC de fornecer um relato equilibrado, imparcial e detalhado do processo de candidatura. Todos na BBC Sport reconhecem a importância de preservar a integridade e a independência da BBC. Estes são valores que os jornalistas da BBC Esportes vivem e respiram todos os dias, e [foram] aplicados de forma adequada durante a entrevista, em janeiro de 2010, com o Sr. Batistuta”.
Enviei um email a Mike Lee e perguntei-lhe se era verdade que, como resultado de sua ligação, a manchete foi mudada. Ele escreveu de volta: “Oi Andrew, quem sou eu para duvidar de sua palavra? Espero que esteja tudo bem, os melhores votos, Mike”.
A empresa de Mike Lee, Vero, está agora promovendo a candidatura olímpica de Doha para 2020.
Entra em cena o “gestor de crises”
Do lado de fora da Associação dos Jornalistas de Olímpicos, mas dentro do círculo de agitadores de marketing, está Peter Hargitay, um suíço-húngaro “gestor de crises” convocado pelo presidente da FIFA Sepp Blatter para lidar com acusações de corrupção.
Antes disso, ele fora absolvido – duas vezes – de acusações de tráfico de cocaína, e fora mantido sob custódia em Miami durante sete meses por oferecer risco de fuga. Também era sócio de uma agência de detetive particular em Zurique, vangloriando-se do fato de que poderia aplicar golpes em contas bancárias, ao mesmo tempo em que era perseguido por um empresário suíço, que alegava uma dívida de 2 milhões de libras.
Hargitay defendeu a empresa Union Carbide após o desastre de Bhopal, na Índia, no final de 1984, quando um derramamento de gases tóxicos matou mais de mil pessoas e atingiu meio milhão. Ele também representou o fraudador de impostos Marc Rich, assinalado como um dos homens “mais procurados dos Estados Unidos”.
Hargitay se gaba de pode controlar os meios de comunicação. Em um de seus muitos sites, ele anuncia a “indivíduos de alta renda” que “se o cliente tem grandes problemas, a resposta é uma poderosa estratégia para ficar fora da mídia e preparar reportagens, notícias e alternativas de furos que desviem, prejudiquem e desestabilizem o interesse da imprensa”.
Hargitay procura impressionar potenciais clientes ao vangloriar-se de ter estreitas relações com repórteres esportivos. E chega até mesmo a encaminhar correspondências privadas como prova disso. “Eu li praticamente todos os artigos [da proposta de candidatura da Inglaterra à Copa] por curiosidade profissional e concluí que as suas reportagens foram mais sólidas e de melhor qualidade”, informou Hargitay a um conhecido repórter esportivo de Londres. “Peter, muito obrigado pela nota, você é muito gentil”, respondeu o tal repórter, em correspondência encaminhada a um cliente Hargitay.
Minha própria experiência com Hargitay fornece alguma luz sobre como as coisas funcionam na obscura intersecção entre o jornalismo esportivo e as relações públicas.
Em 2006, eu fiz um programa para a BBC relatando que em 1997 Sepp Blatter, então secretário-geral da FIFA, tinha tido conhecimento de um suborno de US$ 1 milhão para o então presidente João Havelange.
No ano seguinte, na véspera do lançamento de campanhas para as Copas do Mundo de 2018 e 2022, eu contei no mesmo programa da BBC que houvera pagamento de subornos para que a Alemanha sediasse ao Copa de 2006. Em outro programa informei sobre as tramoias com ingressos executadas pelo vice-presidente da Fifa, Jack Warner. Quando o procurei, ele me ameaçou e até cuspiu em mim no aeroporto de Zurique. Depois em Trinidad, me disse: “Vá se foder”. Estava claro que eu iria fazer mais programas sobre a corrupção de Blatter e da FIFA.
Em maio de 2008 Hargitay presenteou o então editor de esportes do jornal Daily Telegraph, David Bond, com uma impressionante entrevista exclusiva.
Não era segredo que o presidente da Associação Inglesa de Futebol e líder da candidatura para a Copa do Mundo de 2018, Lorde David Triesman, fora membro do Partido Comunista e participara do movimento estudantil na Universidade de Essex antes de se tornar tesoureiro do partido trabalhista britânico. Mas Hargitay dizia que eu havia sido membro do partido Comunista junto com ele na Universidade de Essex.
David Bond me ligou para checar as alegações de Hargitay. “Não, eu não estudei em Essex, David. Eu estudei na Hull University. Cinco anos antes. Sim, a Hull. Não, eu nunca fui membro do partido comunista. Eu nunca conheci David Triesman. Não na Universidade. E nem depois. Nunca o conheci”. Alguns dias depois David Bond me mandou um email confirmando que Hargitay era sua fonte. O Telegraph não publicou a matéria plantada.
O esporte deve ser monitorado pelo público
Em maio de 2011 Triesman prestou depoimento perante o comitê de Cultura, Mídia e Esporte a respeito da candidatura da Inglaterra como sede das Olimpíadas.
Ele explicou que logo no começo da disputa, recebeu a visita de Blatter em Zurich. “Na primeira parte da conversa ele me questionou se Andrew Jennings era meu amigo, e se estudamos juntos na universidade. Acho que ele ficou surpreso quando eu disse que nós nem nos conhecíamos. Ele estava muito preocupado com essa possível amizade e continuou batendo na mesma tecla por algum tempo.”
Hargitay, que foi contratado por um breve período para ser conselheiro da Inglaterra na disputa, foi dispensado assim que Triesman assumiu a presidência da Associação Inglesa de Futebol. De acordo com a revista Private Eye de janeiro de 2011, Hargitay pedira 4 milhões de libras em dinheiro para propinas a serem pagas a dirigentes da FIFA.
Para muitos repórteres esportivos sediados em Londres, Hargitay continua sendo uma fonte confiável.
O fato de que repórteres deixaram esses massagistas da mídia entrarem em seus clubes particulares é apenas um sintoma de um problema muito maior: a falta de escrutínio público.
O esporte é um grande negócio, tem muita influência sobre politicos e, como a cidade de Londres tem aprendido, pode ser usado para consumir quilômetros de terrenos, destruir espaços públicos, suspender liberdades civis e garantir isenções em impostos.
É em nome do interesse público que o esporte deveria ser adequadamente monitorado.
E além disso, não é muito digno ficarmos recebendo ordens de tipos como Hargitay e seus colegas.
É muito mais divertido estar do outro lado
Eu fui condenado à prisão na Suíça por dizer que o presidente do Comitê Olímpico Juan Antonio Samaranch era corrupto. A sentença foi suspensa – mas eu me orgulho muito disso. Também me orgulho de ter sido proibido de participar das conferências de imprensa da FIFA e de seus escritórios desde que publiquei uma reportagem sobre um enorme bônus secreto que Blatter pagou a si mesmo. Claro que a FIFA não deveria ter feito isso. É autoritário, pura censura. Mas eu considero um grande elogio.
Quem está fora do pequeno círculo conhece as pessoas mais bacanas, mais engraçadas – e melhores jornalistas, como Jean-Francois Tanda, em Zurique, um advogado que virou jornalista usando os tribunais para forçar a os diretores da FIFA a publicar a investigação criminal devastadora sobre quem recebeu os US$100 milhões em propinas pagas por Jean-Marie Weber. Há o time do Sunday Times de Claire Newell e Jonathan Calvert, que gravaram com câmera escondida alguns diretores da FIFA pedindo propinas –o que forçou a sua expulsão. E, é muito prazeroso colaborar com dois dos melhores repórteres investigativos no Brasil, Juca Kfouri e Rodrigo Mattos, descobrindo quem são os personagens duvidosos envolvidos na preparação das próximas Copa do Mundo e Olimpíadas.
Quando eu visito as escolas britânicas de jornalismo, costumo citar o conselho do falecido jornalista Louis Heren: tentem descobrir por que este canalha está mentindo para vocês. Ou então cito a frase do Lorde Northcliffe: “Notícia é algo que alguém, em algum lugar, quer suprimir. Todo o resto é mera propaganda.”
Eu convido todos os jovens repórteres a repetirem alto comigo essas frases – e eles sempre repetem. É muito alentador.
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[Andrew Jennings, para o British Journalism Review]