Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um mundo esportivo próspero e alheio à crise

Com a tradicional festa de abertura repleta de representações teatrais sobre a história e cultura locais, adornadas por um vasto desfile de manifestações estéticas e artísticas, teve início em Londres, na sexta-feira (27/7), a 30ª edição dos Jogos Olímpicos, a última antes de serem realizados pela primeira vez na América do Sul, mais precisamente no Rio de Janeiro, daqui a quatro anos.

Com cerca de 10 mil atletas de 203 países, a disputarem 26 modalidades esportivas, os jogos tiveram orçamento de aproximadamente 30 bilhões de reais, financiados evidentemente pelos cofres públicos ingleses em sua maioria. Já o Comitê Olímpico Internacional, deverá arrecadar a bolada de 23 a 25 bilhões de reais na soma de direitos de televisão, vendas de produtos licenciados e patrocínios.

Por conta disso, o evento terá uma das marcas dos tempos modernos, a despeito de velhos “lemas olímpicos”, que apesar de iniciados na Grécia Antiga não escapam do culto ao “deus” contemporâneo, o mercado. Medidas de exceção foram tomadas para preservar os interesses comerciais dos patrocinadores oficiais, notadamente os da área alimentar, como o McDonalds, que só após muita pressão “liberou” o fish and chips que tanto marca o cardápio dos britânicos.

Com isso, verifica-se claramente a velha equação de custos públicos com lucros privados. O governo e, consequentemente, a sociedade locais bancam a maior parte dos custos e a arrecadação vai majoritariamente para o bolso do COI e seus respectivos aliados, mantendo tal renda nas esferas de controle da cartolagem internacional, a exemplo das práticas da FIFA no futebol e suas confederações de aliados.

Curta duração

Diante da magnitude do evento, há expectativas de audiências globais extraordinárias. Estima-se que só a cerimônia de abertura pode ter sido assistida por 4 bilhões de seres humanos! Decisões das principais modalidades, com alguns dos ídolos mundiais, devem superar a casa do bilhão de telespectadores. Clichês à parte, um momento único de congraçamento dos povos e envolvimento coletivo em torno de uma causa universal, o que tanto urge em tempos de crises do capital e de regimes políticos, rodeadas por cada vez mais alarmes ambientais.

Exatamente por isso, reforçou-se outra marca da atualidade: um aparato de guerra para prover a segurança desejada aos jogos, parte ponderável do orçamento total. Apesar disso, a G4S, empresa encarregada de treinar e dispor 10 mil profissionais da área para trabalhar nos cuidados e monitoramento dos eventos e pessoas, fracassou em sua tarefa, causando uma considerável consternação interna.

O fiasco veio à tona quando a apenas duas semanas da abertura o governo inglês não teve mais como esconder sua falta de confiança na empresa e convocou em caráter de urgência 3.500 integrantes de suas forças armadas para trabalharem nas ruas de Londres. O fato causou indignação no parlamento e na população, uma vez que vários recrutas tinham outras missões a cumprir, ou delas voltavam, dentre elas o nada “olímpico” Afeganistão. Fora o fato de terem se passado sete anos desde a escolha da cidade como sede.

Com isso, passou a se notar certo clima de tensão, até relatado pela mídia, entre os novos “voluntários” dos jogos e os torcedores, vindos de todos os cantos do mundo, de todos os estilos e espécies turísticas. Aliado a estratégias neuróticas de revista e monitoramento dos presentes nas competições e à enorme lista de proibições de objetos e alimentos tolerados nas arenas (inclusive qualquer imagem de Che Guevara), tornam-se um tanto ostensivas as facetas comerciais e militares, dentro de algo que deveria ser presenciado em clima de despreocupação e festa, ao menos se comparamos com outras questões mais complexas da vida humana. Mas a bomba que matou duas pessoas e feriu outras 100 nos jogos de 1996, em Atlanta (EUA), não saem da memória, sem esquecer, mais atrás, do trágico assassinato de 11 atletas israelenses em Munique, 1972, por membros do Setembro Negro.

De toda forma, antecipa as mesmas operações de segurança que veremos por aqui, com a diferença que nossas forças de segurança são acostumadas a atuar na mais absurda ilegalidade e truculência contra seu “inimigo interno” de cada dia. Precisaremos estar atentos a possíveis violências contra os habitantes mais pobres do Rio de Janeiro, que certamente serão tratados como seus congêneres baianos em trios elétricos de carnaval, vendo do lado de fora uma festa para poucos e visitantes.

Para preservar os interesses dos patrocinadores oficiais, uma série de leis de exceção já são editadas desde já (assim como o foram em Londres), tornando crime diversas formas prosaicas de comércio, a partir de mínimas associações de seus produtos com as Olimpíadas, seus símbolos e imagens icônicas. Toda concorrência “extraoficial”, entre aspas para evitar um tratamento “marginal” aos milhares de comércios e trabalhadores que não podem assinar contratos com o COI, será combatida e afastada dos locais de competições.

Tratando da parte aprazível, não faltará diversão aos telespectadores, pois não há época igual para acompanhar e se entusiasmar com modalidades sempre ignoradas do noticiário, heróis de ocasião cujas histórias impregnam nas mentes humanas e as esperadas consagrações de atletas que ficarão imortalizados em suas especialidades.

Com competições que começam e geralmente se definem em um ou dois dias, não haverá instante em que alguma medalha não esteja sendo colocada no peito de algum(a) atleta. A maioria das competições tem disputas ou performances de curta duração, de modo que se pode acompanhar de forma mais palpitante os esportes com os quais temos menos intimidade – e avançar um pouco em sua compreensão e divulgação, se o Brasil realmente se pretende uma potência olímpica. São poucos esportes, como o futebol, o basquete ou a vela, em que uma disputa dura tanto tempo, nesses casos, duas ou mais horas.

Contribuição “espiritual”

Além do mais, não faltará cobertura midiática. Pela primeira, e provavelmente única, vez na história a Rede Globo não transmitirá o maior evento do esporte mundial, ao lado da Copa do Mundo. Por 60 milhões de dólares, a Record ganhou a corrida e ficou com os direitos exclusivos de transmissão, o que na prática só valerá para a televisão aberta.

A Sportv, emissora fechada da própria Globo, desembolsou 22 milhões de reais e disporá de quatro canais diários cobrindo os eventos 24 horas por dia. ESPN (três canais), Band (dois canais, Sports e News), Esporte Interativo e o próprio braço da TV de Edir Macedo, a Record News, formam a lista dos canais que cobrirão as Olimpíadas na televisão por assinatura. Uma overdose, a ser reforçada pela mesma Globo em 2016, que redobrou esforços para não ficar de fora da festa dentro de seu próprio quintal.

Ao todo, o COI arrecadou 4 bilhões de dólares em direitos de televisão, número com alta probabilidade de ser superado pela edição carioca, que já garantiu 3,7 bilhões, com quatro anos ainda pela frente, tempo de sobra para novos contratos. Os ingleses fecharam 11 patrocinadores; para 2016, já existem 10 garantidos, o que também ressalta o momento econômico das grandes, e cada vez mais transnacionais, empresas brasileiras.

Rompendo definitivamente com certas ilusões, a terceira Olimpíada londrina (as outras foram em 1908 e 1948) não dará contribuição alguma, a não ser moral, “espiritual”, à complicada conjuntura econômica britânica. Servirá como um bom anestésico a ser aplicado por 17 dias consecutivos no combate às agruras do mundo capitalista em crise. Aliás, crise financeira é algo que não existe no principal escalão do mundo esportivo.

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[Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania]