Paulo Francis tinha frases desastrosas e outras primorosas. Dentre estas uma das melhores dizia que se uma bomba explodisse num cinema onde estivesse passando filme de 007, boa parte dos intelectuais do lugar morreria. A presença de muitos deles ali seria uma surpresa. Eles iam ver James Bond como alguns xeretam novelas, sempre alegando que só viram aquela dita cena, ao passar inadvertidamente à frente do aparelho de televisão.
Seria uma surpresa, de qualquer maneira, o surgimento de um explosivo em sessão de cinema de 007, O agente de sua alteza real a rainha da Inglaterra, mesmo autorizado a morrer em nome de John Bull, era sutil ao invés de violento. Bom era o alterego aperfeiçoado do seu criador, Ian Fleming, que também foi agente secreto. Homens do raciocínio e da cultura, de vez em quando gostam de mostrar muques e derrubar adversários. O celuloide permite essa projeção.
O massacre num cinema americano no subúrbio de Denver, no Colorado, com 12 mortos, ocorreu numa pré-estreia de Batman, tudo indicando que inspiração para um ato deliberado de violência radical, somos tentados a dizer desumana, se a violência em si não é pura desumanidade, tudo mais se transformando em pleonasmo.
Doses múltiplas
Há um componente caracteristicamente americano nessas sucessões de tragédias. Um país cuja constituição assegura a qualquer um comprar qualquer arma sem qualquer condicionante, provocando a ira dos beligerantes potenciais (e efetivos) à menor das ameaças de contingenciamento desse livre armar-se, tem que mudar – com urgência e radicalmente.
O personagem de Batman foi visitar os feridos e apresentou condolências aos parentes dos mortos. Podia ser um golpe de relações públicas e marketing, mas deve ter mesmo algum componente de sinceridade. Bond não serviria de inspiração a essa barbárie. Batman, sim. E com eles toda essa corja de super-heróis a serviço da belicosidade made in USA.
Os que participaram das muitas guerras nas quais o país se envolve já tiveram motivos suficientes para descobrir que o poderio desses heróis é fantasia barata. Cessada a violência, nada fica de reprodutivo, apenas sangue, lágrimas, desgraça. Se o império não é autolimpante, que os satélites e extensões, como nós, tratemos de combater os efeitos dessa síndrome.
Mesmo porque ela já se instalou em nosso organismo e vem apresentando sinais de que a tragédia, em doses múltiplas e segmentadas até agora, está apenas à espera de um acaso para se revelar grande como é. Tão grande quanto a superprodução americana, com o toque de realismo do grande império.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]