Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Greve, isonomia salarial e meritocracia

O artigo do professor Cerqueira Leite publicado ontem (16/08/2012) na Folha de S.Paulo toca numa ferida muito dolorida do sindicalismo docente do país: a questão das greves, de seus excessos e, por inevitável, de seus resultados. Comparando os excessos grevistas aos excessos de uma criança a quem não se impõem limites educativos, o emérito professor e pesquisador da Unicamp parece criar uma desagradável dissonância no uníssono do coral sindicalista docente que ecoa em todo o país. Ao elogiar uma proposta do governo que só foi feita em consequência da greve, acaba implicitamente atribuindo o mérito da proposta à greve. Neste ponto, um leitor pró-greve particularmente sensível provavelmente já enquadraria o emérito professor no pacote ideológico denominado pelos grevistas de “pelego”. Mas o leitor atento logo nota que Cerqueira Leite reconhece o mérito intrínseco (a “respeitabilidade” e até o “heroísmo”) do instrumento greve, criticando, porém, os abusos cometidos por grevistas e sugerindo que tais abusos só possam ser combatidos via corte salarial.

O tema é complexo, mas o que mais incomoda nos tantos artigos publicados em jornais e blogs a respeito é que ainda não tocam o fulcro da questão – neste caso, algo como um coração com dois ventrículos: de um lado o sistema educacional em si; e do outro lado a gestão deste. Com a única, e ainda assim muito parcial exceção do sistema educacional soviético, o rolo compressor do centralismo estatal se move na direção contrária à da produção científica e artística.

Isonomia salarial e meritocracia são antônimos

O problema da educação e da cultura no Brasil é que nem o Estado as assume inteiramente (e portanto, totalitariamente), como na ex-URSS ou em Cuba, nem a iniciativa privada o faz. O Estado não as assume porque se diz democrático, preferindo assim o suposto meio-termo da autarquia. Mas dado que o oxigênio da autarquia vem todo do Estado, ela nunca chega a alimentar-se pela boca, mantendo um eterno cordão umbilical que a impede de crescer. E a iniciativa privada, por sua vez, com raríssimas exceções, não assume a educação e a cultura porque, entre outras razões históricas, submete-se a práticas tributárias extorsivas e se usa deste fato para repassar, refletir (no sentido ótico) ou meramente atribuir ao Estado a responsabilidade pela educação. Assim tem-se um ciclo vicioso de difícil solução que mantém o país continuamente subdesenvolvido.

Diante desta realidade, é evidente que, enquanto o sistema for assim, o uso de greves nunca resolverá nada – até porque educação e cultura não entram no rol das atividades essenciais à sobrevivência nem segundo a Constituição nem segundo a única lei de greve existente no país. Portanto o máximo que se pode obter com greves de docentes são alterações salariais quase cosméticas, como sempre foi. Por este ângulo, é compreensível que o sindicalismo docente aumente esses micro-ganhos com lentes hiperbólicas e até mesmo com fé religiosa, já que, sem tal atitude, correr-se-ia o risco de olhar para a realidade como ela é e perceber que todo o esforço de anos de greves e protestos jamais resultou em qualquer mudança significativa na atitude de tantos governos para com a educação e a cultura de seus eleitores-contribuintes.

Essas constatações mostram que a infantilidade subjacente aos excessos e abusos dos grevistas não está somente na falta do cumprimento da lei por parte dos reitores e das autoridades – o “limite dado à criança”, segundo Cerqueira Leite – mas em algo muito anterior: a incapacidade (esperamos que não eterna) dos docentes de diagnosticar o problema para poder curá-lo. Sem total independência de gestão, inclusive financeira, as universidades públicas nunca poderão aplicar o que de fato significa uma meritocracia. Qualquer um que conheça as universidades norte-americanas, da melhor à pior, privada ou pública, sabe que isonomia salarial e meritocracia são antônimos. Junte-se a isso o fato de que o inchaço gigante do Estado (roubos aqui inclusos) gera o ciclo vicioso da tributação excessiva, sonegação e afins, temos então que as greves de docentes são parte integrante, e pelo visto cada vez mais fundamental, do ciclo vicioso acima referido. Jamais a solução para este.

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[Alexandre Eisenberg é professor universitário, Santa Maria, RS]