Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A construção da imagem da criança

Cada cultura constrói sua criança. E como a sociedade e a imprensa pensam na pauta sobre quem é hoje a criança retratada nas reportagens? Ela, com certeza, é bem diferente daquela das reportagens de anos atrás. E a mídia tem conseguido pensar e acompanhar isso? Qual a imagem, a descrição, o detalhamento desse personagem tão próximo e tão distante de cada um de nós? O repórter e o editor sabem falar sobre criança com a imagem de seus filhos real ou idealizada?

Este é o primeiro de três artigos que propõem uma reflexão sobre a infância que estamos construindo e falando/escrevendo sobre. “A construção da imagem da criança – Antes” apresenta brevemente alguns pilares da construção deste conceito no Ocidente: a criança, como era vista no medievo europeu, chegando até a idade moderna. “A construção da imagem da criança – Agora” aborda a construção da infância no Ocidente, no século 20, e “A construção da imagem da criança – Aqui”, a realidade brasileira, uma mescla de ambos.

Imagine que um certo Rafael pediu um Playstation 3 e um Xbox. Uma certa Marina, além da nova coleção de Monster High, quer trocar seu laptop. Juliana, educadora há vinte anos, começa a preparar a festa do dia das crianças em seu colégio, com bastante antecedência. Nada de festinha mambembe, improvisada, como em sua infância. A clientela contemporânea exige mais. Tem que ter tecnologia espalhada pelo pátio, blog para estimular a interatividade durante a preparação, filmagem e fotografia profissionais, quase uma superprodução.

Pecado original

Márcia e Pedro temem a chegada do 12 de outubro. O pequeno Bento lhes foi retirado muito cedo, mal completou quatro anos. Observar a barulheira gostosa das famílias passeando, ou almoçando nos restaurantes aos domingos, tortura. Outro filho? Com certeza, mas fica um buraco, a ausência do primogênito é insubstituível.

Conhecemos estas histórias. Gostando ou não, entendemos os códigos que regem as interações. Nem sempre foi assim. Cada cultura constrói os modelos que precisa para se desenvolver e, por sua vez, se orienta por eles. É um processo dinâmico, em permanente transformação.

Voltemos ao “Antes”:

Quem diria que a imprensa e a literatura mostrariam no século 16 que a infância acabava por volta dos sete anos?… “Perdi dois ou três filhos com amas, não sem pena, mas sem aborrecimento”, comentou certa feita o filósofo francês Michel de Montaigne. Mais ou menos na mesma época, século 16, relatava uma pessoa da boa sociedade inglesa que “tendo perdido dois de seus filhos, ainda lhe restava uma dúzia de treze”. Irritada, a neta de madame de Rambouillet lhe disse: “Ora esta, minha avó, falemos de assuntos de Estado, porque eu já tenho seis anos.” É provável que ela não estivesse brincando, pois a maioridade das mulheres acontecia entre 11 e 14 anos, dependendo da época.

Apesar de nossa incredulidade ao lermos os comentários acima, uma coisa é certa: eles fizeram parte da visão de mundo, e de si mesmos de nossos antepassados. Apenas alguns séculos nos separam. Digo “apenas”, pois do ponto de vista evolucionista não há diferença alguma entre nós e eles. Culturalmente falando, entretanto, é como se vivêssemos em planetas distintos. Esperar que um ser humano de dez anos se comportasse como um adulto, não somente era comum, como normal. A criança era vista como um adulto em miniatura, privado de razão, palavras, discernimento e, por isto, merecedor de desconfiança, principalmente sempre que se expressasse de forma espontânea. Tal imagem da infância explica, em parte, a ausência de cuidados voltados para as necessidades da criança. “A medicina foi bem pouco atenta à conservação das crianças, e isto por indiferença e desconhecimento. (…) Milhares daqueles que poderiam se tornar úteis à sociedade perecem, sem que ninguém se digne a olhá-los”, critica o médico inglês, G. Buchan, no século 18.

Se retrocedermos mais ainda, e formos parar na época de Santo Agostinho, veremos que ele descreve a criança como ignorante, apaixonada e caprichosa: “Se deixássemos fazer o que lhe agrada, não há crime em que não se precipitaria”, escreve Agostinho em A cidade de Deus. Para ele, a infância é um forte testemunho da condenação pelo pecado original, a evidência de como a natureza humana, corrompida, se precipita para o mal. A dureza deste raciocínio talvez nos choque mais do que as palavras de Freud chocaram nossos avós.

De que criança estamos falando?

O fato de que todos nós nascemos criança, e o seremos até um determinado período é inegável, mas até quando e, sobretudo, quem é esta criança, isto sim, é uma construção social definida por nós, adultos.

A criança vista como adulto em miniatura, presente na Europa por tantos séculos foi mão de obra imprescindível em uma sociedade assolada por guerras frequentes, epidemias dizimadoras, e alto índice de mortalidade. Quem pudesse realizar qualquer trabalho, era destinado a tal, o mais rápido possível. Esta necessidade, associada à visão avassaladora da natureza humana como a personificação do mal, levou ao combate dos instintos a todo o momento. Assim, fazia sentido ensinar meninas, tão logo soubessem falar, frases como: “Lembremo-nos de nos despojarmos do homem velho e de nos revestimos do novo. Reconheço meu Deus, que a necessidade que tenho destas roupas é uma prova da corrupção que herdei de meus pais”. A ocasião para tal fala, é quando trocavam de roupa.

E se pudéssemos dar voz às essas crianças? É bem possível que elas nos tivessem relatado situações bem diferentes da perspectiva do adulto.

No fim do século 18, Rousseau publica seu romance Émile, e com ele começa a difundir a ideia de um ser humano essencialmente bom. Apesar do livro ter sido proibido e queimado em Paris e Genebra, abriu caminho para um outro olhar sobre a infância. “O homem nasce livre, e em toda a parte é posto a ferros”, foi uma de suas mais famosas frases.Pouco a pouco a criança foi sendo reconhecida como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades próprias. A ideia do pequeno adulto nos parece hoje em dia, impensável.

Retrocedemos, avançamos? Qual a imagem de criança você perseguirá em sua próxima matéria? Neste sentido, a pauta do 12 de outubro surge como possibilidade para reflexões sobre a forma como entendemos e nos relacionamos com a criança nos dias de hoje, como construímos o sentimento de infância em nós e em nossas crianças.

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[Adriana Kortlandt é psicóloga clínica, autora de Almagesto e Fios da memória]