O filósofo francês Roger-Pol Droit, que consegue a façanha de ser lido por quase todas as correntes de pensamento sobre a sociedade contemporânea que disputam a primazia de explicar o ser humano deste período que alguns convencionam como a pós-modernidade, construiu há uma década um conjunto de reflexões provocativas que insinuam dúvidas sobre o modo como produzimos cultura. Revisitar tais conjecturas numa circunstância de isolamento, mesmo que parcial, em relação à profusão de notícias, teorias e invenções intelectuais que nos cercam, pode ser uma experiência interessante (escrevo este texto de uma pequena cidade no interior da França).
Não estamos propriamente diante de um iconoclasta do tipo comum no campo acadêmico e no ambiente da mídia institucional, desses que se põem contra a corrente – qualquer corrente – como tática para obter algum registro na disputadíssima ágora do mundo hipermediado. Trata-se, por estranho que pareça, de um pensador que propõe usarmos a imaginação para nos aproximarmos da verdade. Não a imaginação criativa, mas a pura imitação, ou a simulação.
A imaginação como método pode parecer, para alguns, um retrocesso de dezenas de séculos na maneira de pensar o mundo. A proposta de imaginar o já existente, então, seria definitivamente tida como um salto para fora do campo intelectual. No entanto, o que ele demonstra, de maneira muito simples, é que se pode provar que o fluxo de informações ao qual o indivíduo contemporâneo está exposto não contêm novidades. Trata-se de um sistema que não para de se repetir, produzindo sempre a mesma coisa.
Ritmo alucinante
Trata-se de um exercício muito simples: um dia qualquer, o cidadão deixa de ler seu jornal ou sua revista de informações genéricas, esquece de ligar a televisão no horário dos telejornais, despreza a internet e ouve apenas música no rádio. No fim do dia, exercita a imaginação com base naquilo que já sabia antes desse período de “alienação” voluntária e produz suas próprias atualidades. O resultado pode ser surpreendente: a facilidade com que se pode fabricar uma pseudoatualidade confirma que as notícias são puro déjà vu.
O moinho dos meios institucionais de informação digere o mundo de complexidades em que vivemos e transforma tudo em pó, e essa ação de pulverizar produz novas complexidades que nada têm a ver com a realidade, ou seja, de tudo que absorvemos como informação nova nunca saberemos o que de fato é inédito. O exercício proposto por Roger-Pol Droit expõe a falsidade dos simulacros: a sugestão do ineditismo serve para enfeitar a mensagem desprovida de atrativos e, na verdade, aquilo que aceitamos como notícia praticamente não contém realidade.
Essa observação é tanto mais evidente quanto mais próximas do entretenimento se localizam essas informações. No entanto, fazendo o percurso imaginário dessa “periferia” do sistema informativo, composto por aquilo que nos é dado como notícia, por exemplo, sobre o cotidiano das celebridades ou a rotina das disputas esportivas, e penetrando no ambiente que se convenciona pertencer aos hardnews, o fenômeno se repete. Um dia da Bolsa de Valores ou as discussões no Congresso Nacional, as estatísticas de crimes e acidentes, os números do trânsito, quase tudo que nos parece composto de elementos de uma nova realidade não passa de repetição.
Se não é possível, objetivamente, definir onde termina o já sabido e começa o conhecimento do inédito, de que maneira estamos, como sociedade, formulando nossa visão de mundo? Se estendermos esse questionamento para dentro do campo acadêmico, é de se perguntar, também, quanta realidade existe em certas teorias formuladas sobre um contexto cuja natureza mutante é na verdade uma encenação? Para que, afinal, precisamos de notícias nesse ritmo que nos impõe o sistema informativo?
À moda de Caetano
Em seu texto provocativo, o filósofo afirma que as notícias não dizem mais do que “a miséria sem fim dos homens” [Droit, Roger-Pol, 101 expériences de philosophie quotidienne. Edition Odile Jacob, Paris, 2001]. Se, por se tratar de mera fantasia, elas não ajudam o indivíduo a entender a realidade, pode-se imaginar que, na verdade, essas informações em fluxos contínuos podem estar reduzindo as possibilidades de melhor interpretar o mundo e, com isso, retardando o desenvolvimento da consciência de si. Assim alienado, o cidadão passa sua vida entretido com o mesmo fato, que lhe é apresentado continuamente travestido de novidade, condenado a repetir a história até o fim dos tempos.
Contra essa falsificação pouco podem as teorias críticas que buscam questionar o valor de certas produções de cultura, se elas são também alimentadas pela mesma fonte de simulações de realidade – e o efeito cumulativo dos simulacros de atualidades pode estar afetando o campo científico, na formulação de falsas questões que acabam produzindo teorias sobre nada. Se a própria cultura se renova pelos processos comunicacionais e realimenta o fluxo de informações onde a roda não para de se repetir, inspirando mais conjecturas, é o caso de se perguntar, à maneira de Caetano Veloso: “quem lê tanta teoria?”