Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“Mensalão será um julgamento de exceção”

O mensalão não tem nada de emblemático – ao contrário disso, será um julgamento de exceção. Essas são as palavras do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, para quem os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm construído um discurso paralelo ao longo das sessões que destoa da tradição da Corte. “Nunca mais haverá um julgamento em que se fale sobre flexibilização do uso de provas, sobre transferência do ônus da prova aos réus, não importa o que aconteça”, afirma.

As inovações citadas por Santos sustentam sua crença na exceção. Presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, autarquia do Ministério da Cultura, o estudioso da democracia e de regimes autoritários é considerado um decano da ciência política no Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ontem, por telefone, ao Valor:

Na sua avaliação, o julgamento do mensalão no Supremo tem sido técnico ou político?

Wanderley Guilherme dos Santos – Estou seguro de que até agora, do que tenho acompanhado, os votos finais dos ministros tiveram um fundamento técnico. Eles se referem sempre a pontos do Código Penal, que explicitam quais sejam, e dão as razões pelas quais as evidências apresentadas justificam aquela votação. Comentários paralelos, entretanto, raramente têm tido a ver com esses votos. Alguns ministros têm feito comentários que não têm nenhuma pertinência com o que vem sendo julgado. Temo que isso seja uma preparação para julgamentos e votos que não sejam tão bem fundamentados legalmente, mas sim baseados nas premissas que os juízos paralelos vêm cristalizando no cérebro das pessoas que assistem. Temo que uma condenação dos principais líderes do PT, e do PT como partido, acabe tendo por fundamento não evidências apropriadas, mas o discurso paralelo que vem sendo construído.

O sr. está falando do uso da teoria do domínio do fato, usada para atribuir responsabilidade penal a um réu que pertence a um grupo criminoso, mas que, por ocupar função hierarquicamente superior, não é o mesmo sujeito que pratica o ato criminoso?

W.G.S. – Entre outras coisas. Se retomarmos a primeira sessão, quando os ministros estavam decidindo se deveriam fatiar ou não o julgamento, Gilmar Mendes fez uma declaração que muito me assustou. Ele disse que 'o julgamento [do processo do mensalão no Supremo] desmistifica a lenda urbana de que prerrogativa de foro é sinônimo de impunidade' e que isso tinha que acabar. Fiquei assustado. O que é isso? Ele já estava dizendo que, para efeito de demonstrar à opinião pública que ela tem um preconceito sem fundamento em relação ao Supremo, o tribunal vai condenar. Ao longo do processo o ministro Luiz Fux, ao julgar alguns dos réus do processo por gestão temerária, disse que era uma gestão horrorosa. Não existe gestão horrorosa, isso é um comentário que se faz em campo de futebol, não é um comentário de um ministro da Suprema Corte.

O sr. acha que os ministros estão dizendo, nas entrelinhas do julgamento, que o tribunal condenará alguns réus sem fundamentar essas condenações em provas concretas?

W.G.S. – Exato, são comentários que às vezes não têm a ver com o que está sendo julgado, mas na hora do voto os ministros votam de acordo com a legislação. É uma espécie de vale-tudo. Esse é meu temor. O que os ministros expuseram até agora é a intimidade do caixa 2 de campanhas eleitorais e o que esse caixa 2 provoca. A questão fundamental é: por que existe o caixa 2? Isso eles se recusam a discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo comum – que pode variar em magnitude, mas que está acontecendo agora, não tenho a menor dúvida. Como se o que eles estão julgando fosse alguma coisa inédita e peculiar, algum projeto maligno.

O Supremo está destoando da forma como costuma julgar outros processos?

W.G.S. – Sem dúvida. Esse Supremo tem sido socialmente muito avançado, bastante modernizador, mas ele é politicamente pré-democrático. Primeiro porque os ministros têm uma ojeriza em relação à política profissional, como se eles não fizessem política – fazem o tempo todo. Mas em relação à política profissional eles têm um certo desprezo aristocrático. E quando na política brasileira irrompeu a política popular de mobilização, eles não aceitaram, dão a isso um significado de decadência, degradação.

Ainda que o caixa 2 de campanhas eleitorais tenha sido o que motivou os demais crimes apontados pela acusação, em nenhum momento o Supremo coloca em julgamento o sistema eleitoral brasileiro?

W.G.S. – Nossa legislação eleitoral é nebulosa, confusa, inconsistente. Isso está nos jornais todos os dias, cada eleição é um momento de elevado índice de litígios na sociedade. Cada zona eleitoral decide de forma diferente a propósito dos mesmos fatos. É uma legislação que provoca conflitos, que traz uma imprevisibilidade jurídica enorme para o sistema brasileiro. Mas os ministros não querem aceitar isso, não querem aceitar que a Justiça eleitoral é a causadora dos problemas políticos no país.

Mas na atual fase do julgamento, que envolve o núcleo político, os ministros do Supremo estão citando as coligações entre o PT e outros partidos de diferentes posições ideológicas…

W.G.S. – Eles acham que não existem coligações entre partidos de orientações diferentes, acham isso uma aberração brasileira, mas não conhecem a democracia. Por isso que eu digo que é pré-democrático, eles têm uma ideia de como a democracia funciona no mundo inteiramente que é inteiramente sem fundamento, acham que a democracia é puramente ideológica. Os sistemas de representação proporcional são governados por coalizões das mais variadas. Não tem nada de criminoso nisso. Mas os ministros consideram que, para haver coligações dessa natureza, só pode haver uma explicação criminosa no Código Penal. Isso é um preconceito.

Se o Supremo condenar os réus do núcleo político sem fundamentar suas decisões em provas de que houve crimes, mas o fazendo apenas porque partidos de diferentes vertentes de pensamento se coligaram, isso não comprometeria várias instituições brasileiras, a começar pelo próprio sistema político?

W.G.S. – Comprometeria se esse julgamento fosse emblemático, como sugerem. Na minha opinião, dependendo do final do julgamento, acho que nunca mais vai acontecer. Até os juristas estão espantados com a quantidade de inovações que esse julgamento está propiciando, em vários outros pontos além da teoria do domínio do fato. Nunca vi um julgamento que inovasse em tantas coisas ao mesmo tempo. Duvido que um julgamento como esse aconteça de novo em relação a qualquer outro episódio semelhante.

O que se tem dito é que a Justiça brasileira vai, enfim, levar políticos corruptos para a cadeia. O sr. está dizendo que isso vai acontecer apenas desta vez?

W.G.S. – Estão considerando esse julgamento como um julgamento emblemático, mas é justamente o oposto, é um julgamento de exceção. Isso jamais vai acontecer de novo, nunca mais haverá um julgamento em que se fale sobre flexibilização do uso de provas, sobre transferência do ônus da prova aos réus, não importa o que aconteça. Todo mundo pode ficar tranquilo porque não vai acontecer de novo, é um julgamento de exceção.

Um julgamento de exceção para julgar um partido?

W.G.S. – Exatamente. O Supremo tem sido socialmente avançado e moderno e é competente, sem dúvida nenhuma, mas é politicamente pré-democrático. Está reagindo a uma circunstância que todos conhecem, que não é única, mas porque se trata de um partido de raízes populares. Está reagindo à democracia em ação – claro que naqueles aspectos em que a democracia é vulnerável, como a corrupção. Mas é um aspecto que não decorre do fato de o partido ser popular, mas da legislação eleitoral, feita pelo Legislativo e pelo Judiciário. Eles são a causa eficiente da face negativa da competição democrática.

No julgamento da hipótese de compra de votos no Congresso, não discute o próprio sistema político que permite a troca de cargos por apoio político ou a existência de alianças regionais, por exemplo?

W.G.S. – A votação da reforma tributária não foi unânime, mas vários votos do PSDB e do DEM foram iguais aos dos governistas. Na reforma previdenciária, o PSDB votou unanimemente junto com o governo, na época o PFL também votou quase unanimemente. Isso aconteceu na terça-feira, quando todos os partidos votaram com o governo no Código Florestal – o PT foi o partido com mais votos contrários. É um erro de análise inaceitável pegar a votação de um partido e dizer que o voto foi comprado. Isso é um absurdo. E não é só isso. A legislação é inconsistente no que diz respeito a coligações. Ela favorece a coligação partidária de qualquer número de partidos – todos, se quiserem, podem formar uma coligação eleitoral só. Porém, a lei proíbe que partidos que têm maior capacidade de mobilização financeira transfiram, à luz do dia e por contabilidade clara, recursos para partidos com menor capacidade de mobilização. Então você induz a criação de coligações, mas proíbe o funcionamento delas. Isso favorece o caixa 2, entre outras coisas. Todos os países com eleições proporcionais permitem coligações, do contrário não há governo possível. A coligação entre partidos que não têm a mesma orientação ideológica não é crime.

Desde o início do julgamento os ministros do Supremo apontam a inexistência de provas técnicas contra a antiga cúpula do PT, afirmando que as provas existentes são basicamente testemunhais

W.G.S. – O ministro Joaquim Barbosa, em uma de suas inovações, declarou, fora dos autos, que ia desconsiderar vários depoimentos dados em relação ao PT e a alguns dos acusados porque haviam sido emitidos por amigos, colegas de parlamento, mas considerou outros depoimentos. A lei não diz isso, não há fundamento disso em lei. Um ministro diz que vai desconsiderar depoimentos porque são de pessoas conhecidas como amigos, dos réus, mas pinça outros, e ninguém na Corte considera isso uma aberração? Parece-me que o julgamento terminará por ser um julgamento de exceção.

Isso significa que a jurisprudência que vem sendo criada no caso do mensalão será revertida após o julgamento?

W.G.S. – Espero que não, porque realmente se isso acontecer vai ser uma página inglória da nossa história.

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[Cristine Prestes, do Valor Econômico]