O Ocidente deve se abster de publicar filmes ou charges que sensibilizem o mundo islâmico?
Não era incomum encontrar, até recentemente, declarações de renomados arabistas sobre a desinformação quase total do público ocidental acerca do islã. O britânico William Stoddart é um deles. Em um livro de 1976, escreveu que o islã era o mundo desconhecido. De lá para cá, muita água correu debaixo da ponte, mas o islã segue desconhecido.
Tendo estudado o assunto por duas décadas, sou levado a concordar com o diagnóstico. Eu acrescentaria que se antes o desconhecimento podia ser considerado inocente, derivado de mera falta de informação, a ignorância de nossos dias não pode.
Ela resulta menos da simples falta de informação do que de opiniões interessadas, truncadas e parciais. Resulta também, às vezes, de material provocativo e irresponsável.
Esse me parece ser o caso do “filme” “Inocência dos Muçulmanos” e das caricaturas do “Pasquim do Carlinhos” francês (“Charlie Hebdô”). O intuito é causar o maior escândalo e turbulência possíveis, atraindo assim atenção para este ou aquele autor ou publicação, além de alguns trocados na conta bancária dos envolvidos.
Boa resposta
Qual a contribuição real que este gênero de insulto à religião, seus símbolos e figuras traz para a compreensão do problema?
Uma coisa é criticar de maneira objetiva este ou aquele aspecto do mundo islâmico, ou de outro universo religioso, outra bem diferente é denegrir ou escandalizar gratuitamente com propósitos interessados. Desde quando insulto aos referenciais tradicionais, de qualquer povo que seja, é liberdade de imprensa?
Frequentemente se esquece que não se está lidando com um time de futebol ou uma escola de samba -nenhum demérito aqui-, mas de uma das grandes civilizações da humanidade. Com um conjunto de princípios e valores em torno do qual gira, já por 1.500 anos, a vida e a morte de 1,6 bilhão de seres humanos.
Ao longo de sua milenária existência, o islã trouxe aportes relevantes para a própria civilização ocidental, em praticamente todos os campos de atividade humana. Na filosofia, teologia, espiritualidade, matemática, astronomia, medicina, navegação, arquitetura etc.
E essa civilização emergiu, praticamente do nada, fulminantemente, por assim dizer, graças às visões e inspirações recebidas por um indivíduo chamado Maomé. Ora, surpreende que alguns muçulmanos, que devem tudo o que são e têm ao que o profeta lhes ensinou, se revoltem?
Se, no Ocidente, as antigas sabedorias e as espiritualidades tradicionais não são mais consideradas, se muitos renegam seu patrimônio cristão tradicional, isso não vale para a maioria da humanidade contemporânea. Na Índia, com seus 1,2 bilhão de habitantes, a esmagadora maioria continua praticando a tradição de seus ancestrais. No Extremo Oriente, o mesmo se dá com budistas, taoístas e confucionistas.
Outro aspecto da questão: a “fúria” não envolve a maioria da população islâmica em 50 países.
É uma minoria, manipulável por grupos extremistas, que reage de forma fanática. A maioria não aprova as “liberdades” tomadas com seu profeta, mas não crê que incendiar automóveis ou linchar embaixadores seja uma boa resposta. Ao passo que manifestações pela Primavera Árabe movimentaram dezenas ou centenas de milhares, as contra o filme não mobilizaram mais que centenas de pessoas. Isso certamente diz algo sobre o problema.
“Religião” política
Finalmente, não sejamos hipócritas. Nenhum governo ou veículo de imprensa ocidental permite que tudo e qualquer coisa seja publicado. A editora da revista francesa que exibiu fotografias da duquesa de Cambridge -nem os tabloides britânicos o fizeram- foi ameaçada de morte. Só os muçulmanos são fanáticos?
A ideologia da “liberdade de expressão absoluta” me parece uma “religião” política. É uma forma de idolatria, como o culto de um ídolo, um “bezerro de ouro”.
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[Mateus Soares de Azevedo, 53, mestre em história das religiões pela USP, é autor de Homens de um Livro Só: o Fundamentalismo no Islã, no Cristianismo e no Pensamento Moderno (Record), entre outros]