Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lavando a alma

“O establishment branco é agora a minoria. Não é mais a América tradicional. Metade do público quer coisas. E quem vai dar coisas a eles? O presidente Obama” (âncora Bill O’Reilly, da Fox News, na noite terça-feira, dia 6/11). Se você, caro leitor, está contente e aliviado, como eu, com a derrota da intransigente direita americana na eleição presidencial, lembro que podemos brindar também por outro motivo.

Mesmo que você não tenha seus sentidos assaltados diariamente pelas imagens, sons e rios de texto da máquina publicitária de Rupert Murdoch, também conhecida pelo slogan risível Fair and Balanced (Justa e Equilibrada), a rede Fox News pode ter ouvido falar do ataque de nervos sofrido pelos propagandistas da rede durante a apuração. A mídia conservadora americana, responsável pela bolha obscurantista em que só sobrevivem fatos que confirmam sua visão de mundo, ficou nua como o rei, na frente de milhões de súditos espectadores. Enganou seu público ao dizer que Obama era uma anomalia a ser corrigida. Um presidente ilegítimo, eleito por sorte da primeira vez. Mas essa visão da primeira eleição de Obama, como uma peça pregada por uma conjuntura favorável, não é exatamente monopólio da direita.

A Fox emprega, entre outros, Sarah Palin e o nefasto Karl Rove, ex-assessor político de George W. Bush, hoje especializado em esvaziar as contas bancárias de milionários descontentes com o país de Barack Obama. Rove, tendo investido US$ 300 milhões do dinheiro alheio para fazer propaganda política, num esforço frívolo que não impediu nem a reeleição de Obama nem a retomada do controle republicano no Senado, decidiu que tinha direito aos próprios fatos. Ao vivo, na noite de terça- feira, quando os analistas de números de seu patrão davam a vitória a Obama em Ohio, Rove questionou a aritmética e foi humilhado por sua colega de bancada, que fez a câmera do estúdio acompanhá-la ao centro de apurações da Fox.

“Malandro demais se atrapalha”

No dia seguinte, Rove teve a desfaçatez de declarar que Obama “suprimiu o voto” na eleição. O suíno Rush Limbaugh disse que Obama ganhou porque o povo não vota contra Papai Noel. Sean Hannity, outro proeminente âncora da Fox, disse que os eleitores de Obama são crianças mimadas cujos pais deixam que eles comam porcaria e assistam TV à vontade, oferecendo aos críticos a chance de especular se faz menos mal comer porcaria do que assistir ao autor do comentário. Até a diáfana Peggy Noonan, ex-redatora de discursos do mais moderado George Bush pai, declarou: “Quem previa a vitória de Obama ignorava o mundo à sua volta.” Como dizia Bush filho, esta “comunidade que se baseia na realidade” é um problema. Gente como Nate Silver, que criou um método estatístico em seu blog do New York Times e previu acertadamente a vitória de Obama, ameaçando, com matemática, o mercado de trabalho para os meteorologistas políticos.

Pouco antes da votação que reelegeu Barack Obama, o historiador Kevin Kruse, da Universidade de Princeton, publicou um artigo de opinião no New York Times, dizendo que uma derrota garantida nesta malcheirosa campanha de 2012 seria a derrota da verdade. Atualizando a frase atribuída a Abraham Lincoln, Kruse disse que é possível enganar todas as pessoas durante todo o tempo necessário para fazer campanha. E apontou Mitt Romney como o campeão absoluto da falsificação de fatos.

Na terça-feira (6/11), em Times Square, com a temperatura perto de zero e o calor da segunda explosão popular de alegria pela vitória de Barack Obama, lembrei de um ditado que trouxe do Rio na bagagem, ao me mudar para Nova York. E compartilho a sabedoria carioca com a oligarquia que vive na bolha: “Malandro demais se atrapalha.”

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[Lúcia Guimarães é jornalista, em Nova York]