As polêmicas em torno da “Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual”, apresentada pelo governo da Argentina, têm sido cada vez mais objeto de reflexões, tanto na própria sociedade argentina como também na brasileira e em vários outros países do mundo. Aqui queremos contribuir com este debate, que constitui um verdadeiro exercício para compreender o que é a liberdade de imprensa.
Por um lado é complicado entender como o Grupo Clarín se autodenomina um defensor da liberdade de imprensa do país vizinho, já que a lei que deu “asas” para o grupo crescer (de forma quase ilimitada) foi uma “Lei de Radiodifusão” promulgada pelo ex-governo da ditadura militar, que ficou no poder de março de 1976 até dezembro de 1983.
É conhecido que a ditadura da Argentina foi um regime que eliminou, através de um golpe cívico-militar, os poderes republicanos estabelecidos pela Constituição Nacional vigente à época, governando o país sem nenhum controle social, legislativo ou judicial, já que ditos poderes foram dissolvidos ou ocupados por aliados ideológicos do regime ditatorial. A autodenominada “Junta Militar de Governo” exerceu os três poderes do Estado sem o mais mínimo controle democrático, até a democracia ser restaurada, sendo o presidente Raúl Alfonsín o primeiro da nova etapa histórica.
A vitimização dos conglomerados
É interessante lembrar o governo militar daquele país caracterizou-se pela perseguição – sob pretexto de combater a guerrilha de esquerda – sistemática e organizada contra qualquer organização ou indivíduo que tentasse expressar uma ideia ou ponto de vista discordante do estabelecido pelo regime. Professores, estudantes, religiosos, jornalistas, empresários e freiras foram assassinados sem que tivessem nenhuma garantia jurídica de defesa ante um tribunal imparcialmente constituído. Mas o povo brasileiro sabe muito bem o que isso significa, já que na primeira metade da década de 1960 também viu estabelecido regime ditatorial militar no país, com características muito similares. O que vigorou durante esses anos obscuros da história argentina foi a ausência de garantias de qualquer tipo.
Hoje, chama a nossa atenção a “vocação democrática” e os princípios da defesa à “liberdade de imprensa” do Grupo Clarín ou do diretor do jornal La Nación, que sustentam, em entrevista à Veja – reproduzida por este Observatório –, que a “Argentina é uma ditadura com eleições”. É possível que sintam saudades das ditaduras, como as vividas no século passado. Mas o que queremos questionar, primeiro, aqui, é: qual é a liberdade sustentada por grupos que foram coniventes e respeitosos com uma lei de Radiodifusão construída por uma ditadura, ou que aceitaram, em 1976, assumir o controle, oferecido pelo ditador Jorge Videla, da principal fábrica de papel da Argentina, após a morte duvidosa do dono da referida empresa, o empresário David Graiver? Pensamos que esta situação pode ser vista, pelo menos, como “curiosa”.
No entanto, partindo para uma análise mais aguçada, podemos compreender essa “curiosidade” a partir das reflexões propostas pelo filósofo contemporâneo francês Michel Foucault acerca dos discursos, segundo as quais nos sugere pensá-los de maneira a permitir irmos além dos enunciados, na tentativa de revelar “a intencionalidade do sujeito falante”. Neste sentido, é possível inferir que o Grupo Clarín – este em especial, mas também La Nación – guardam a intencionalidade não somente de legitimar sua condição de beneficiários do regime ditatorial instaurado na década de 1970 na Argentina, através de um golpe de Estado, mas sobretudo de subverter a situação e desqualificar um governo democraticamente eleito, fazendo-o parecer ditatorial. Certamente que muitas críticas podem – e devem – ser feitas à administração da presidenta argentina Cristina Fernández; mas a possibilidade de sequer pensar na vitimização desses grandes conglomerados de mídia sob o pretexto de que o governo está exercendo atitude ditatorial, não se aplica.
Longo período de debates
Vejamos alguns porquês:
Atualmente, o Grupo Clarín possui 240 canais de TV a cabo, quatro de TV aberta e 10 frequências de rádio. Não parece pouco para um país com uma população de aproximadamente 40 milhões de habitantes, concentrados majoritariamente na cidade de Buenos Aires e na chamada “Gran Buenos Aires”; (qualquer semelhança com as Organizações Globo não é mera coincidência!).
Com a chegada da democracia, em 1983, surgiu na Argentina uma infinidade de meios de comunicação tentando ocupar a demanda reprimida (em todos os sentidos da palavra). Foram editadas revistas, jornais, e, principalmente, surgiram rádios comunitárias ou de baixa potência, muitas das quais continuam até hoje exercendo a tão proclamada “liberdade de imprensa”, ou, talvez, deveríamos dizer “liberdade de expressão” E quando essas rádios comunitárias surgiram, concomitantemente começaram a surgir variadas denominações desrespeitosas para identificá-las: “rádios ilegais”, “rádios piratas”, “concorrência ilegal” etc. Apesar da mensagem gerada pela mídia consolidada que pretendia desqualificá-las, tanta era a necessidade das pessoas de tornar públicos suas ideias, seus programas, e até colocar uma pauta comercial na mídia local e comunitária que esses discursos não se consolidaram – como osmass media gostariam; ao ponto de boa parte dessas rádios continuarem emitindo seus programas até hoje. Não só isso. O Grupo Clarín copiou e aperfeiçoando o modelo comunicacional desses meios de baixa potência, ou comunitários, oferecendo à época pacotes publicitários para “pequenos anunciantes”, praticando uma política comercial e de destruição dessa mídia local atingindo o aspeto econômico.
Continua sendo esquisito o discurso do Grupo Clarín, publicando provocações diretas no sentido de não acatar os mandados judiciais da Argentina e de não obedecer à nova “Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual”. Infelizmente, para o grupo, a lei foi aprovada por um Congresso Nacional, cujos membros foram eleitos em processos democráticos e em um Estado no qual os direitos políticos estão vigentes, diferente do que acontecia durante a ditadura militar. Não só isso. A nova lei da argentina chegou ao Congresso Nacional depois de um longo período de debates desenvolvidos pela sociedade civil; foram realizados encontros, palestras, oficinas, mobilizações etc., em muitas ocasiões, justamente para discutir a referida legislação. Sendo assim, outra pergunta se faz imprescindível: como podemos dizer que uma lei debatida por diversos setores e associações representativas ataca a liberdade de imprensa? É lógico que em um debate participativo, alguns apoiaram as iniciativas, outros não. O Grupo Clarín, pertence a esse último grupo. Por questões óbvias.
Emissoras opositoras e favoráveis à lei
De um modo geral, as matérias publicadas por diversas mídias brasileiras – e reproduzidas pelo OI – utilizam uma linguagem bastante afastada da linguagem que se espera no jornalismo: “Argentina denuncia cerco à imprensa”, é um exemplo. E outra pergunta precisa ser feita: Argentina denuncia? Errado. Quem denuncia é Clarín, La Nación, esses grupos que têm muito a perder, ou seja, os privilégios garantidos por um Estado autoritário.
Repetimos: as ações do governo argentino, na administração de Cristina Fernández podem e devem ser criticados, tanto em forma positiva como negativa, mas neste debate não estão refletidas as opiniões de outros setores que também fazem parte do sistema comunicacional ou, que, também praticam a tão proclamada liberdade de imprensa. Basta observamos o seguinte:
É difícil de entender que exista um “cerco à imprensa”, quando, por exemplo, a Rede Nacional de Medios Alternativos (http://www.rnma.org.ar), expressa e pede o cumprimento da Lei em questão, mas também critica, em um documento publicado em seu website e abaixo assinado por numerosas personalidades e ONGs argentinas, a sua execução por parte do governo, já que até agora (mesmo a Lei ter sido ditada em 2009) não existe um plano estratégico para legalizar e entregar licenças operacionais às ONGs e setores representativos da sociedade como a lei determina. Até agora, a estratégia das autoridades é atingir os interesses de um grupo opositor como Clarín; o Foro Argentino de Rádios Comunitárias (www.farco.org.ar) também apoia a nova lei, sendo um dos objetivos declarados pela organização a defesa e democratização da comunicação como condição para a democratização da sociedade; é importante ressaltar que nem todas as rádios que participam desse Foro são oficialistas. Pelo contrário. Existe uma grande quantidade de emissoras nitidamente opositoras ao governo atual, mas favoráveis à nova lei.
Proibido mostrar gols
Dito isto, é imprescindível outro questionamento: por que essas vozes nunca são consideradas pelas grandes mídias do Brasil para serem citadas quando abordam sobre essa lei argentina? Essa perspectiva nos faz lembrar Milton Santos em sua obra Por uma Outra Globalização, quando adverte sobre o “papel despótico da información” (p. 38). Para ele, as técnicas de informação em geral são utilizadas por poucos com a finalidade de atender seus objetivos privados. De acordo com Santos, o que se transmite para a maioria é uma informação manipulada “que, em vez de esclarecer, confunde” (p.39).
Discutir sobre “liberdade de imprensa” é imprescindível, salutar. No entanto, vale lembrar que os conglomerados midiáticos, como o grupo Clarín, o fazem da melhor forma a defender, principalmente, os interesses econômicos por cima dos interesses da sociedade.
Nós, autores deste artigo, somos contra os investimentos oficiais dirigidos para sustentar atividades econômicas particulares, como é o caso, por exemplo, do futebol profissional; no caso do Brasil, estamos contra a construção dos estádios para a Copa do Mundo 2014, quando o país precisa de investimentos em saúde, em educação, em infraestrutura, em segurança etc.. No caso argentino, em 2009, o governo de Cristina Fernández saiu em apoio da Associação do Futebol Argentino (AFA), financiando as transmissões dos jogos pela TV pública, o que implica um custo anual de aproximadamente 500 milhões de reais. Somos contrários. No entanto, temos que lembrar o fato de o Grupo Clarín possuir os direitos para as transmissões e, sendo assim, a impossibilidade de uma TV local, por exemplo, tentar transmitir, mesmo que localmente, um jogo de futebol realizado na cidade da emissora; não só isso: era proibido mostrar os gols do jogo até o momento que o grupo Clarín considerasse apropriado – o que acontecia aos domingos, depois da meia-noite, quando o programa Futebol de Primeira terminava. Essas TVs eram obrigadas a mostrar a imagem congelada das arquibancadas, sob pena de serem submetidas a processo judicial pelo Grupo Clarín (caso a TV ousasse mostrar uma jogada, um gol etc.).
Liberdade é escolher
Desta forma, outro questionamento se faz necessário: qual é a fronteira entre a “liberdade de imprensa” e os direitos de uma imagem? Talvez, chegue o dia no qual as grandes redes de TV possuam os direitos exclusivos para transmitir o dia a dia das nossas vidas.
É interessante assinalar que grupos como Clarín, La Nación e outros mostram a sua preocupação pela distribuição da pauta publicitária do governo argentino, pelo fato de estarem sendo discriminados nessa nova distribuição do dinheiro público através da publicidade. Assim como o grupo Clarín manifesta a sua preocupação nesse sentido, também expressa as suas críticas quando o governo transfere recursos para diferentes empresas públicas. É coerente. Mas, neste caso, outra pergunta vem à tona: como podemos entender essa bipolaridade? Ou seja: se os recursos públicos vão a empresas públicas é ruim, mas se esses recursos são cortados de uma holding privada, isso é ruim? Parece que existem duas formas de medir o mesmo problema. Na obraInterpretação:autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico, Eni Orlandi se refere à incompletude que caracteriza qualquer discurso. De acordó com ela, isso ocorre por conta da multiplicidade de sentidos nele existente. Para Orlandi, a linguagem não é exata, completa ou clara. Assinala ainda que, no discurso, encontramos as questões referentes à língua, à história e ao sujeito. Neste caso, se olharmos para trás, veremos a história do Grupo Clarín e entenderemos, sem muito esforço, os fundamentos do seu discurso.
Continuando a discussão, outros questionamentos surgem: e quanto aos cidadãos? Qual é a liberdade que têm – não como consumidores – de serem livres para assistir a uma programação pluralista? Por acaso ter TV por assinatura é garantia de algo? A liberdade é, infelizmente, de escolher entre as cores e logomarcas das empresas que vendem o mesmo produto, mas em embalagens diferentes. É assim na Argentina. É assim no Brasil.
O cidadão é o refém
Interessante é observar como as grandes corporações somam apoios dos seus “clientes” (ouvintes, telespectadores, etc.) na defesa dos seus interesses corporativos, usando um discurso de defesa da “liberdade de imprensa”. Neste sentido queremos perguntar outra coisa: que grau de liberdade perderíamos se a Rede Globo (leia-se também Band, Record, SBT, etc.) desaparecesse ou mudasse de dono? Teríamos menos liberdade de imprensa? Duvidamos.
Nesta perspectiva, ainda nos referindo ao Brasil, outra questão aparece: qual é a “cota” de negros, de índios, de portadores de deficiências que apresentam programas na TV? Cada dia que assistimos TV neste país, pensamos estar assistindo a uma rede britânica ou estadunidense, ou que o Brasil está em um continente longe da América Latina. Com Rento Machado “informando” de Londres, pensamos que a nossa capital é “London”. Poderíamos nos remeter a outras questões, como os campeonatos europeus de futebol, em detrimento dos campeonatos latino-americanos, por exemplo. Mas preferimos não expandir tanto os nossos questionamentos.
E para finalizar, ressaltamos: seria interessante que medida semelhante à adotada na Argentina, referente aos meios de comunicação, fosse implementada no Brasil, como uma experiência prévia antes de tentar modificar o atual modelo de comunicação audiovisual vigente no país. Pela experiência vizinha, não parece ser uma tarefa fácil e explica, de algum modo, a lentidão nesta direção mostrada pelo governo atual – e os anteriores – no sentido de “mexer” nas grandes corporações midiáticas. Enquanto isso, o cidadão é o refém.
Referências bibliográficas
FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
ORLANDI, Eni. Interpretação:autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. São Paulo: Pontes, 2004.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2001.
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[Lisandro Diego Giráldez Álvarez é químico, doutor em Fisiologia pela Universidad de Buenos Aires, pós-doutor em Neurociência pela Universidad Complutense de Madrid, Espanha e Universidade Federal da Bahia e diretor da Agenciencia – Comunicación Científica; Verbena Córdula Almeida é doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo pela Universidad Complutense de Madri (UCM) e professora adjunta do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, BA]