Não é agradável sentir-se como parte de um mundo em extinção. E, definitivamente, não acho um exagero concluir que minha profissão e a especificidade do trabalho que faço hoje estão fadados ao fim em curto ou médio prazo. E a culpa é jornalística. É de conceito. Não trato aqui, de maneira rasa, das teorias sobre o fim do jornal impresso. Mas é verdade que, a cada dia, tenho mais sólida a convicção de que ele realmente vai acabar. Talvez seja bom começar por aí, embora eu não queira tratar exatamente disso neste “artigo”.
Não acho que o jornal impresso vá acabar por conta da concorrência das novas mídias, sobretudo das possibilidades oferecidas pelo mundo digital. É teoria velha, derrubada anos após o lançamento do rádio ou décadas depois do surgimento da televisão. Não creio que os custos de produção, agravados pela necessidade de importação de papel e, por conta disso, pela premissa de ser suscetível às intempéries externas, possam ser fatais. Avalio que está longe o dia em que as pressões ambientais, que contestam um modelo que, direta ou indiretamente, força a derrubada de árvores e queima de combustíveis para o transporte dos bens físicos, irá gerar um efeito cabal.
Não deixo de achar que são relevantes os aspectos supracitados. Mas são agravantes em um processo que levará ao fim o trabalho que se faz hoje. Tenho poucas esperanças na reversão do quadro, pois nenhuma dessas questões importantes está no centro do problema.
O jornalismo regrediu
Nunca vi, nem li, nem pensei qualquer outro caminho para escapar do fim anunciado que não a trinca formada por: exclusividade + análise + opinião. É fácil justificar. Lembro-me das aulas do MBA de Gestão Empresarial quando apontavam a exclusividade como uma das principais características que garantem o sucesso de um produto no mercado. É óbvio. Mas soa radical dizer que um jornal deveria ater-se a conteúdo exclusivo, não é? Até admito que se pode conceder uma página, um quarto ou um terço do jornal para factuais, embora considere, em análise curta, desperdício de papel.
As reuniões de pauta, no trabalho diário de construção de um jornal, preocupa-se com um somatório quase totalmente formado justamente pelo que deveria ganhar menos espaço. Hoje, a pauta se forma somando pautas sazonais, agenda (cultural, política, econômica, esportiva), ronda policiais, releases, material de agência, manchetes de sites noticiosos, destaques na TV, destaques na rádio, suítes do jornalismo impresso do dia. Ou seja: de um mix de tudo isso, faz-se 90% do jornal do dia seguinte. Os outros 10% se fazem com pautas verdadeiramente exclusivas, temas de lavra própria, ou abordagens que não necessariamente são exclusivas, mas que se colocam assim naquele momento, como denúncias com base em informações de órgãos oficiais, tais como Ministério Público, Tribunais de Contas, associações de servidores, agências reguladoras etc…
Deveria ser o contrário! A definição da pauta, fosse tomada com base na qualificação do produto, deveria seguir a lógica inversa. Para definir 90% do conteúdo de um jornal, deveria se pegar o que tem e subtrair as pautas sazonais, a agenda, a ronda, os releases, as agências, as manchetes de outros veículos. O que sobrasse seria o jornal interessante do outro dia.
A exclusividade se perde
Se é tão óbvio, por qual(is) motivo(s) não se faz assim?
1) Acostumou-se a fazer assim. As chefias não sabem fazer de outra forma. Conheceram o jornalismo impresso assim. Viram seus chefes fazerem assim e repetem como mantra que é assim que funciona.
2) Repórteres não são incentivados a isso por ninguém.
3) Não foram suficientemente preparados nas faculdades. Com raros exemplos em contrário, tiveram pouquíssima experiência prática no período acadêmico.
4) Não têm um ciclo de aprendizado nas redações. São logo jogados à rua para pautas diárias, não passam por etapas de formação.
5) Dos que se destacam, muitos são alçados aos cargos de chefia, onde não lhe permitem pensar o jornal como deveriam, mas apenas gerenciar, apagar incêndios, cuidar de coisas que não são de jornalistas, tais como escalas de horários e operacionalização do jornal. Os que aceitam, fazem por dinheiro ou por status.
6) Alguns poucos permanecem na reportagem ao longo dos anos, adquirindo experiência suficiente para superar esses aspectos em contrário. Esses têm a capacidade de construir as pautas que fogem ao padrão. Pela capacidade acima da média, porém, são exigidos ao extremo, em várias pautas diárias ou em pautas que outros não conseguem fazer com a mesma rapidez e desenvoltura. Não têm tempo para fazer o que possuem capacidade de fazer.
7) Não é exatamente falta de gente. É que as mudanças baseadas em estudos de leitura transformaram os jornais em amontoados de notas, que gastam o tempo e o espaço do que realmente interessa.
8) Boas pautas exclusivas, quando polêmicas, como as denúncias por exemplo, esbarram em interesses comerciais. As sucessivas frustrações neste sentido desmotivam os que têm por costume trabalhar com elas.
9) As reuniões de pauta se tornaram um muro de lamentações. Eis um dos pontos que mais considero como entrave para a evolução dos veículos. Gasta-se o tempo com análises de edição e histeria com o que chamam de “furos” dados pelo concorrente. As chefias irritam-se em não ter o que os concorrentes têm, quando, na verdade, deveriam irritar-se em não ter o que o concorrente também não tem.
10) A prioridade não é dar melhor, mas dar primeiro. Eis a grande bobagem do jornalismo. Ter como verdade absoluta que o leitor prefere apenas o veículo que informa primeiro e comemorar, como vitória, quando se consegue dar antes uma informação que é banal e que será facilmente reproduzida pelos sites e veículos dos outros alguns minutos após ser publicada. No impresso, é uma bobagem sem tamanho.
A agilidade não é a principal característica do jornal impresso, definitivamente. Um assunto, se não for sólido, é reproduzido em minutos por sites, rádios e TVs, que têm capacidade de atrair os leitores de forma muito mais ampla que a manchete em uma banca de jornal. Provavelmente, a maior parte das pessoas, portanto, lerá primeiro em outros veículos, ao ligar a TV, acessar a internet ou ouvir o rádio, o que ridiculariza de certa forma a comemoração de ter sido “o primeiro entre os impressos a dar aquele assunto”.
Diante de todos esses fatores, a exclusividade se perde quase por completo. Pegue um jornal e tente, desconsiderando esses temas mais óbvios, identificar quantas pautas exclusivas cada um deles apresenta.
Edição plural e edição individual
É tudo igual. Agravante disso tudo está no modelo textual padronizado. Não bastasse o conteúdo nacional e internacional ser idêntico, afinal usam até mesmo as mesmas agências de notícia, o conteúdo de lavra própria precisa ser escrito da mesma maneira. Não há liberdade textual. Tudo em nome de uma leitura clara e objetiva. Pressupõe-se, assim, que um jornalista é incapaz de orientar seu texto de forma coesa e agradável sem precisar fiar-se aos padrões estabelecidos e que se repetem dia após dia. Os textos ficam absolutamente iguais e podem ser comparados de forma mais evidente em pautas sazonais. Isso tira do leitor a identificação com seus escritores favoritos. Reforça a ideia de que tanto faz escolher o veículo A ou B e que não precisa pagar por algo que há de igual em opções gratuitas.
A edição vale menos. Há ainda, sobre a exclusividade, que se derrubar o velho argumento de que o leitor, quando compra um jornal, não paga apenas pela informação, mas pela organização dela. Quer-se com isso dizer que, embora tudo que esteja no jornal possa ser encontrado em algum lugar, a edição – o trabalho de escolha dos assuntos – é razão suficiente para que o leitor opte por ele. A cada dia, essa verdade é menos absoluta.
É real que uma edição bem feita e a escolha de bons assuntos agrega valor. Valesse apenas o volume de informação, o melhor veículo jornalístico do mundo seria o Google. No entanto, surgem conceitos e ferramentas, a cada dia, que facilitam o trabalho de edição do próprio leitor. Ninguém sabe melhor o que lhe interessa. Enquanto o jornal é plural, para agradar um pouquinho a cada um, surgem maneiras para que as pessoas construam seus próprios conteúdos. Veja o caso das redes sociais, quando usadas para obtenção de informação. Você segue sites e pessoas que lhe informam sobre o que tem interesse. Visita e favorita os sites e sessões deles que lhe agradam. É mais fácil fazer isso a cada dia, com a criação de feeds e aplicativos que organizam as coisas da maneira que você quer. A edição plural está sendo substituída pela edição individual. O jornalismo impresso terá que achar outra justificativa.
Analisar é preciso
Após as longas observações sobre a exclusividade, reforço a importância da análise. E que não se confunda com a opinião, que tratarei depois. O jornal mais analítico é aquele que interpreta melhor os fatos, em vez de noticiá-los. Hoje, o que se tem é um enorme texto de abertura noticiando algum assunto e uma pequena peça de análise do tema. A lógica deveria ser inversa. A análise é própria e, por ser própria, reforça a sensação de exclusividade. Há entraves que impedem a confecção de um jornal mais analítico e com uma análise mais apurada. São eles:
1) A repetição de fontes. São sempre as mesmas pessoas que aparecem nos jornais.
2) A falta de tempo. Os assuntos ganham corpo ao longo do dia e, após as apurações, não há mais tempo destinado à análise. São limitações industriais.
3) A necessidade de amplificar a notícia e dar com a maior rapidez possível, seguindo a estúpida lógica do “furamos eles”, que só vale mesmo para o jornalista e quase nada para o leitor.
4) A algema que impede adjetivar os textos por medo de que se transformem em “opinião”. Mais uma vez reside aí o medo de que o jornalista não tenha discernimento para construir seu texto de forma imparcial. Ser imparcial é diferente de ser isento. Opinião vende prestígio.
Por fim, em última análise, trato da opinião. Genericamente, toda opinião é exclusiva. Talvez esse seja o maior motivo pelo qual o leitor escolhe o veículo “A” ou “B”. Ele gosta de ler aquela pessoa. Ele simpatiza com as ideias dela. Ou as odeia e quer rebatê-la. Mirem-se em vocês. Não possuem referências de pessoas que vocês sempre buscam ler e que, mesmo não gostando, fazem questão de ler até mesmo para se indignar? É impossível copiar isso. Pode-se copiar a ideia, pode-se trabalhar o mesmo assunto, pode-se até mesmo copiar o texto integralmente. Mas nenhum veículo será capaz de reproduzir o sentimento que a presença daquele colunista agrega ao veículo no qual escreve regularmente em caráter opinativo. Triste é a inércia.
Melhorias e limites
Infelizmente, quase tudo isso é ignorado. Nas análises diárias da edição, raros são os momentos em que se toca em algum desses temas. Preocupa-se com o jornal do dia seguinte e não com o produto jornal que se quer construir. Questiona-se a padronização, os erros de diagramação ou os termos utilizados. Avalia-se questões microscópicas do que já passou e não se gasta tempo construindo uma nova maneira de fazer.
Os números enganam. Ditas tantas coisas, alguns podem argumentar que os números mostram o crescimento das vendas dos jornais impressos, a despeito de toda essa análise de carência do produto que se faz atualmente. Desconsiderem. O aumento da tiragem diária dos jornais impressos no país se dá pelos seguintes fatores.
1) Surgimento de jornais populares. Eles atingiram públicos que estavam fora do espectro do jornalismo convencional. Fizeram com preço. Não com conteúdo. O conteúdo agrada a esses leitores pois, economicamente, eles ainda não têm acesso a outras maneiras de obtê-lo, como também já aconteceu com os jornais tradicionais. Da mesma maneira, em algum tempo, gradualmente, eles também sofrerão o mesmo desgaste.
2) Promoções. “Assine o jornal e ganhe o brinde tal”, “recorte o selo e troque pelo produto tal” são alguns dos impulsos que empurram o jornal para cima ou que não deixam que ele perca tanto público. Substitui-se, assim, o público cativo de informação pelo público cativo de promoção. Lembro-me, inclusive, de certa entrevista com o fundador do Lance!, jornal de esportes, que temia o uso das promoções como estratégia para ampliar o público do jornal. Era difícil mantê-los fidelizados sem criar alguma promoção nova.
3) Melhorias na distribuição. Um jornal frequentemente deixava de chegar aos leitores e perdia público por isso. Aos poucos, ajustando certos processos, utilizando softwares mais avançados, esses problemas foram minimizados. Há um limite para essas correções também.
4) Melhoria industrial. Permitiu que o jornal fosse melhor impresso pudesse ser rodado mais tarde e chegasse mais cedo às mãos dos leitores. Também há limite para tal.
A lógica do trabalho
Assim sendo, não enxergo na evolução da venda dos jornais impressos algo duradouro e que possa ser creditado ao jornalismo que se faz hoje.
As esperanças estão sendo perdidas. Como alento, as mesmas tecnologias que, na visão mais simplista, ameaçam o futuro do jornalismo impresso, podem apontar os novos caminhos. A sucessão de erros nesse sentido, no entanto, acaba agravando o quadro. As versões online levam todos os erros acima citados. Se há o fator positivo de que chegam mais facilmente aos seus consumidores, há o longo caminho a se percorrer na questão do financiamento desses meios.
Na profusão de veículos na internet, nem mesmo os maiores portais do Brasil obtém retorno suficiente para manter seus quadros. Grande parte de seus conteúdos são subsidiados, ainda, por outros braços das empresas das quais pertencem. Sem exclusividade, não é possível cobrar do consumidor. Ele simplesmente troca de veículo online. A migração é ainda mais fácil do que no caso dos impressos, que ainda têm seus leitores tradicionais.
De nada adianta construir belos conteúdos para novas plataformas se são acessados por seis ou sete pessoas que não aceitam pagar nada por isso. Devemos, portanto, voltar à discussão inicial. Se não fizermos, corremos o risco de não conseguir explicar aos nossos filhos e netos a importância e a lógica do trabalho que fizemos um dia.
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[Ricardo Corrêa é jornalista e editor-adjunto de Política do jornal Hoje em Dia (Belo Horizonte, MG). Foi coordenador de Comunicação da Fecomércio Minas e chefe de reportagem dos jornais O Tempo (Contagem, MG) e Panorama (Juiz de Fora, MG)]