Uma reflexão de fim de ano que se me faz necessária apenas para, seguindo o clichê, trazer alguma ordem ao caos do pensamento, mas ainda assim creio que minimamente contribui para o amplo debate do jornalismo que se promove no Observatório da Imprensa, ao menos como visão externa algo fundamentada. Porque em 2012 tive a oportunidade de compor uma equipe de professores de direito penal, todos eles bem mais capacitados que eu, para regularmente escrever uma coluna em um influente jornal, com a missão de tecer comentários técnicos ao desenrolar do julgamento do mensalão. E vou direto ao ponto: minha jurídica preocupação com a imparcialidade do escrito, na prática, transformou-se em problema menor, diante da dificuldade de criação.
O velho fantasma do vazio da mente frente à tela em branco, surpreendentemente, se me afigurou mais grave que outras preocupações éticas que eu me impunha, e o ditado de que é sob pressão que nascem os diamantes não me servia de consolo: dispunha de poucas horas para a gestação de algo que dependia de uma capacidade criativa de que nem sempre domino. Quer dizer, que creio que não está sempre à disposição do ser humano, senão em momentos especiais do dia, daí o temor surgia, o que só dificulta as coisas. Minha capacidade enunciativa não alcança agora uma descrição real de o que me representava o medo de ser forçado a ligar para o editor ou o coordenador do projeto e dizer, “Olha, nada de novo me ocorreu pra coluna!”, porque ele me responderia “Como nada?, e as teorias?, e os fatos do julgamento do hoje?, a briga dos ministros!?”
Imaginava que, se a voz superior assim me inquirisse – notem aonde chegam os delírios impulsionados pelo temor ao fracasso – teria de responder que nada era assim tão simples. Diria que eu começava a notar que o texto jornalístico estava muito mais próximo da composição da ficção, a que estou mais habituado, que aos relatórios de trabalho.
Os personagens do mensalão, seus elementos temáticos, progressão e interação eram algo tão complexo como um mundo à parte, em que o plano do real – o julgamento e as teorias jurídicas que eu deveria resumir – funcionavam como mera referência. Longínqua, esfumada. Se assim fosse – e era – estava eu em terreno assombrado habitualmente pelo fantasma da falta de criatividade. Isso já importava, sim, em algum conforto.
Porque, em um livro publicado em 2012, esforcei-me em defender que fazer ciência – construir teses acadêmicas na área humana – é uma atividade tanto de pesquisa quanto de criação literária. E sei que essa ideia não agradou a muitos, mas esse é outro ponto. A atividade de jornalismo, que exerci apenas de empréstimo, foi para mim uma confirmação dessa tese de que, ou sou eu quem vê o mundo de um modo equivocadamente narrativo (e meu comprometido ponto de vista jamais permitirá reconhecer meu equívoco), ou são os cientistas, e juristas, e historiadores, e jornalistas que mantêm muito bem guardado esse segredo de Polichinelo: de que somos todos profissionais da criação. Logo, sujeitos a momentos de estiagem de ideias.
Convenção cultural
Decerto o discurso do dever da verdade comprime o jornalista a reprimir seu lado criativo, e minha lembrança do ambiente semiformal (ia dizer ambiente de repartição pública, mas prefiro não ser assim tão incisivo) das duas ou três redações que visitei no passado, quando advogava, fez-me pensar que eles mesmos são em parte culpados por esse processo repressivo. Mas é melhor que eu não fale de o que não conheço – até porque faz mais de década que não piso a redação de um jornal e acredito que muito pode ter mudado –, então devo tratar da Universidade e, se empaticamente ela servir de termo de comparação, ótimo.
Observar meu próprio entorno motivou-me a pesquisar sobre a criação como atividade profissional. Porque vivi algum tempo sob o terror, psicológico por definição, de ter de cumprir horário de trabalho para produção em gabinete de professor. Isso me obrigou a em alguma ocasião enunciar que aqueles que passam o dia todo em um espaço montado para cumprimento de horários são os que menos redigem, e a ciência, como creio também o jornal, depende de produtos finais e não de relógios de ponto. Confirmando minha raiz jurídica, digo que a atividade-fim de nosso contrato de trabalho é a produção do bom texto, refletido, não o desperdício de tempo entre cafezinhos e comentários da vida alheia, para os quais, aí sim, a presença física é imprescindível.
Se aceitamos minha observação de que jornalistas e cientistas humanos somos criadores de texto, nosso cotidiano merece alguma revisão. Os estímulos, externos e internos, são elemento de composição daquilo que se pretende enunciar, e os fatos – fatores ontológicos que somente depois do trabalho criador se transformam em tese ou notícia – representam apenas mais um desses estímulos.
Daí que escrever é explorar os caminhos do cérebro e, como já disse eu alguma vez, depende de crer que a mente é um labirinto cuja única regra vigente é o clichê de que uma porta que se fecha descerra em automático outra, como naqueles mecanismos dos antigos jogos de fliperama, em que se abrem sendas para a condução da bola de cromo, que parece livre mas só obedece a comandos, os obstáculos em que tropeça e a que reage; e que às vezes vê caminho aberto a andares inexplorados, que faz tremer toda a máquina. E que pode dar tilt.
Negar então que a possibilidade de construção de um bom texto depende desse trabalho químico e físico com o cérebro seria mais uma vez ignorar um processo real como a vida mesma. Certa vez abusei na dose de café expresso em conversa com um cliente que, ao regressar da cafeteria e ver um outdoor que estimulava a economia de água, fiquei tão fissurado com a possibilidade de um futuro de sequidão que cheguei ao escritório e me meti na internet para ver o preço de algum terreno do interior à margem de algum rio caudaloso.
O único que sentia era sede, e não é isso a paranoia causada por sobredose de uma droga que administramos a diário? Sem café não me sai um texto, e creio que a maioria dos leitores comunga dessa sensação. Se os grandes criadores fossem submetidos a um exame antidoping, seriam quase todos reprovados, e para tanto deve haver justos motivos.
Fisicamente, ou em estímulos externos, passa algo análogo. Não sei exatamente o que pode estimular a criação jornalística, mas tenho algumas pistas a partir de meu ponto de vista. Escrevendo em Direito penal, estou consciente de que a Universidade jamais me remunerará por passar dois ou três tardes em um bairro da periferia, vendo a criminalidade de rua ocorrer abertamente, apreendendo sonoridade da gíria que nasce da necessidade de explicar o próprio delito, que enuncia impressões pessoais de justiça bem diversas daquelas que estão nas bibliotecas.
Ou, falando nelas, pouco se compreende que tocar um livro em sua edição original – tomando notas longe do telefone do gabinete – seja tão essencial quanto visitar um campo de concentração nazista antes de censurar o regime por convenção cultural, ver o terror in locu. Viver o objeto do texto é parte desse estímulo cerebral que nos conduz ao resultado, à produção de um novo texto, essência do nosso trabalho. Esperar que o empregador – a Universidade, no meu caso – reconheça a relevância desses estímulos é utópico, mas não é por falta de reconhecimento da fonte pagadora que o processo deixa de existir.
Papel da verdade
O mal está em confundir-se processo criativo com ficção, vedada esta tanto ao jornalista quanto ao cientista, mas é aqui que vem o paradoxo que não posso deixar de dizer: afastar-se desses estímulos físicos pode implicar uma alienação muito mais ficcional que a temida atividade criativa. Primeiro, porque a realidade não vem pronta para ser captada com um olhar imediato, como de uma Polaroid. Depois, porque, sob a pressão de produzir verdades em ritmo industrial, abrimos flanco a criar falsas percepções e reinvenções inconscientes do real, como uma Sherazade ameaçada de decapitação. Aí sim a, por dizer algo, mentira (ou invenção não intencional) encontra facilmente sua porta de entrada.
Caso assumíssemos o fato de que tanto a ciência humana como o jornalismo dependem de inspiração, teríamos mais força para expiar alguns maus hábitos do nosso dia a dia, ao menos é o que insisto em reiterar quanto ao ambiente acadêmico. Mas reconheço que, também tanto na ciência quanto na notícia, meu posicionamento conduz a um virtual contraponto: o papel da verdade nessa problemática. Devo abordar o tema em uma próxima oportunidade.
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[Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de Direito Penal da Universidade de São Paulo/ Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, autor de O Ensaio como Tese: estética e narrativa na composição do texto científico (Editora Martins Fontes), entre outros]