É muito popular nos Estados Unidos a chamada “lei de Murphy”, uma espécie de aforismo social segundo o qual se uma coisa tem alguma possibilidade de dar errado, vai certamente dar errado. É um cálculo de probabilidades negativo, no mesmo espírito do que aqui se propôs como “ministério do vai dar merda”. Aplicando-se essa “lei” ao fenômeno repetido das chacinas em escolas americanas, não é pessimista a previsão de um novo massacre, no que depender das medidas de controle anunciadas pelo governo dos EUA. Verificar com mais rigor os antecedentes dos compradores de armas parece algo viável (embora precise de aprovação legislativa), mas a proibição da venda de rifles de assalto (armas de guerra, na verdade) depende do Congresso, onde é fortíssimo o lobby das armas.
O controle desse comércio é o tópico principal da grande imprensa americana, seguida, aliás, por ainda grandes jornais europeus. De um lado, as intenções do presidente Barack Obama, anunciadas no dia 16 de janeiro como resultados de uma comissão de estudos; do outro, a persistente resistência dos associados ao “clube do rifle”, de republicanos e democratas, assim como de uma evidente maioria da população entocada nos grotões do american way of life.
Nesta dicotomia parece concentrar-se a questão, já que não mais se insiste em buscar, no plano individual, razões psicossociológicas (divisão entre winners e losers ou vencedor e joão-ninguém, obsessão psicopatológica etc.) para o surto homicida. Quanto a esse ponto, a psiquiatria está definitivamente em baixa.
Sessão de cinema
Mas a dicotomia emergente entre “pacifistas” e “armamentistas”, apesar de todas as implicações práticas, pode não ser muito mais do que uma figura das aparências midiáticas numa sociedade que, tendo nascido ao mesmo tempo em que Estado e Nação, cultua a arma de fogo como um fetiche inerente ao seu mito de origem.
É preciso pensar um pouco mais seriamente sobre o convite feito pelo então presidente Bill Clinton (cúpula econômica de Denver, 1997) aos membros das delegações para que fossem aos banquetes vestidos como cowboys. É um episódio grotesco, sim, mas também um sintoma forte do imaginário americano, que enxerga a Nação através da fumaça do bangue-bangue. Cada cidadão, imbuído desde a guerra da independência contra os ingleses de uma espécie de filogênese guerreira, sente-se autorizado a responder ao ressentimento com tiros, do mesmo modo que faria o lendário Billy the Kid, suposto gatilho mais rápido do faroeste. Glamour cinematográfico à frente, violência desbragada por detrás.
A gracinha de Clinton não foi um rompante imotivado. Denver notabiliza-se pelos gun shows (feiras de vendas de armas), tal como o último de 2012, realizado na véspera do réveillon. A descrição é de Corine Lesnes, no Le Monde (10/1/2013):
“O Tanner Gun Show é uma das maiores feiras da região: 700 bancadas abarrotadas de armas de fogo, de facas (em liquidação, apressem-se, é domingo), de coletes à prova de balas, de blusões com bolsos onde enfiar as armas escondidas que a lei do estado dá o direito de usar por toda parte, com exceção de escolas e locais públicos (um erro, como todo mundo sabe. A prova: os matadores visam particularmente os estabelecimentos escolares, sabendo que ali ninguém está legalmente armado)”.
Foi justamente em Denver, no cinema Aurora, que 12 pessoas foram mortas em julho de 2012 por ocasião da estreia de Batman.
Arma letal
É sempre difícil determinar causas precisas para a desmedida (hybris, dizia o grego antigo) do apelo individual ou grupal às armas. Na edição de janeiro de África 21 (uma boa publicação angolana), um comentário sobre a escalada de violência na Nigéria ressalta, a propósito dos grupos armados proliferantes – Al-Qaeda no Magreb islâmico, Movimento pela Unicidade e o Jihad na África Ocidental, Ansar Dine e as várias guerrilhas no Chifre da África –, que “as referências ao Islã e à lei islâmica não dão conta dos verdadeiros motivos que levam esses rebeldes a matar, e as suas reivindicações são pouco consistentes e variáveis”. Aliás, não se precisa ir tão longe: as matanças nas periferias das grandes capitais brasileiras não raro têm causas imprecisas. A chacina tende a justificar-se por si mesma.
Disso seriam diferentes os alegados porta-vozes mundiais da civilização e da democracia ocidentais, os norte-americanos?
É matéria controversa. Hobbes dizia que o homem é o único animal capaz de assassinar. As armas tornam assassinos os indivíduos, os grupos e os Estados. Um honesto exercício de reflexão pode começar pela cena televisiva, transmitida à larga para os lares de todo o mundo, em que a cúpula civil e militar do poder norte-americano acompanhava ao vivo o episódio da execução de Bin Laden pelos Seals, mais vistos até então em filmes hollywoodianos. Dirá a grande maioria que, afinal de contas, se tratava de um terrorista responsável pelo assassinato de milhares de cidadãos americanos. Não creio realmente que se tenha sentido alguma falta de Bin Laden. Mas o que vigorou foi a velha lei de talião, olho por olho e dente por dente.
Além disso, o que as televisões não contam, o que os jornais brasileiros não publicam, bem ao contrário dos europeus, é que naquele mesmo porão sob a Casa Branca, em que se acompanhou a “Operação Geronimo” (nome, aliás, equívoco para uma ação daquela ordem), o presidente Obama tem assistido a execuções de gente reputada como inimiga dos EUA – por meio de drones. Isso mesmo, aqueles aviõezinhos não tripulados que fazem explodir ativistas ou líderes de guerrilhas na Palestina, no Afeganistão, onde quer que se repute necessário.
Em japonês
Não se está fazendo aqui o processo de Obama, pois quem se senta na cadeira presidencial de um país que ainda detém o hegemon mundial não é mais apenas um “si mesmo”, e sim o suporte da forma vazia do poder, assim como a forma vazia da lei, onde pode alojar-se qualquer coisa, qualquer ato, qualquer atrocidade suscetível de garantir o establishment, tal como ele pretende dar-se e manter-se. Como nos bandos terroristas da África ou do Oriente Médio, as razões para o assassinato ou para a chacina são igualmente “pouco consistentes e variáveis”.
Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Ou seja, uma é o espaço nacional norte-americano, outra é o planeta cá fora. Lá dentro, a chacina causa alguma espécie, é menos banal que o gun show. Daí, essa ferroada na opinião pública dada pelo massacre de 20 crianças em dezembro de 2012 na escola primária de Newtown, que repercutiu até a Presidência da República e levou à adoção de tentativas de controle. Afinal, depois da chacina, o mercado de armas foi estimulado a tal ponto que alguns artigos jornalísticos recorreram explicativamente à palavra “loucura”: em dezembro, houve 2,8 milhões de pedidos de autorização de compra contra 1,6 milhão, em outubro.
As medidas legislativas e executivas que gradativamente se anunciam têm a cor pálida dos paliativos. No principal, pretende-se ao menos reduzir a capacidade mortífera dos cartuchos. São medidas técnicas, portanto. Evidentemente, vão continuar em circulação os rifles e fuzis já existentes, assim como as armas semiautomáticas que, talvez, não sirvam para uma chacina em grande estilo. Evidentemente também, todos sabem que o problema cala mais fundo, pois legislação nenhuma estanca no curto ou médio prazo o animus de violência que percorre como um rio subterrâneo a consciência (ou a inconsciência) coletiva desse país de guerreiros.
Sim, claro, a “América” é uma versão original da modernidade. Uma modernidade de vikings que, coletivamente, se entregam a invasões, matanças e pilhagens, mas individualmente temem a invasão de suas casas por um “Outro” fantasmático. A justificativa genérica para a posse de armas é a defesa da casa contra um suposto invasor.
Entrevistado no gun show de Denver, disse um usuário: “Eu tenho trinta armas em casa, vim comprar mais uma”. Rezam as tee-shirts da Associação Nacional do Rifle: “A única coisa que pode fazer parar um malfeitor com uma arma é um homem bom com uma arma”. Já um cartaz no gun show, segundo o Le Monde, deixava claro que proibir as armas depois de um tiroteio alucinado é como dizer: “Abaixo as colheres. Elas me engordam”.
Como se pode perceber, é difícil fazer prognóstico otimista quanto à fatalidade de uma próxima chacina. Vige a lei de Murphy. O que se oculta atrás dos biombos de Hollywood, Disneyworld e toda a tecnologia “comunicativa” dos tablets é feio demais para se controlar com a combalida beleza da razão democrática. Não é, assim, exagero pessimista invocar uma bela expressão do japonês coloquial para resumir tudo isso: Shigata ga nai! Quer dizer: não tem jeito!
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[Muniz Sodré é jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]