Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Direitos autorais e exposição excessiva na mídia

A tríade do bom advogado, formada pelo conhecimento seguro e profundo da matéria jurídica, o discernimento na defesa do cliente e o trato afável à parte contrária não é um ideal, mas a mais precisa descrição da maneira de atuar de Sérgio Famá D’Antino.

Suas credenciais são o pleno domínio das questões e legislação sobre direitos autorais e proteção à imagem e privacidade, matérias com que lida há quase meio século. Outra marca registrada do advogado paulistano são os contratos que elabora para a clientela formada por uma constelação de estrelas, entre as quais estão artistas consagrados como Juca de Oliveira, Lima Duarte, Francisco Cuoco e Regina Duarte. O ex-diretor da TV Globo José Bonifáciode Oliveira Sobrinho, o Boni, em várias oportunidades comentou: “Ele sabe dimensionar o artista, defendendo-o sem prejudicar os interesses da emissora.”

“Quem se expõe demais sempre tem problemas”

O senhor tem como clientes a maioria dos atores e atrizes consagrados do Brasil. A internet trouxe uma grande exposição, seja por vontade própria, quando o artista posta mensagens em seus blogs e microblogs, seja por parte dos portais, especialmente de fofocas, que invadem todas as áreas de sua vida. Hoje é mais difícil a defesa do direito à privacidade quando a vitima é um artista ou celebridade?

Sérgio Famá D’Antino – A web só acirra a discussão do direito à informação versus o direito à intimidade. O senso comum das pessoas, e a imprensa, infelizmente, adota essa perspectiva superficial, achando erroneamente que o artista, por ser uma pessoa pública, não tem direito à intimidade. A vulnerabilidade do artista e da chamada “celebridade instantânea”, especialmente milionários e filhos de grandes empresários, fica ainda maior quando eles se expõem de livre e espontânea vontade, mostrando por exemplo sua casa, seus filhos, sua festa de núpcias, gravidez e outras situações que são da sua vida privada. O limite para uma pessoa se expor é uma linha muito tênue. Uma pessoa comum pode ter mais noção do que isto significa que certos artistas e personalidades. O fato é que a maioria deles têm como característica em comum o comportamento hiperativo nas redes sociais. Seus comentários podem abrir um flanco perigoso. De qualquer forma, demonstrado o abuso de quem obteve ganho com a exposição indevida de terceiro, nossa lei assegura punição e ressarcimento para todos que se sentirem lesados, tenha a vitima cooperado ou não para essa divulgação não autorizada. O fato é que vivemos tempos em que todos nós perdemos muito em intimidade e o artista, mais ainda. Admiro personalidades que se preservam e me sinto à vontade para citar, entre os artistas, as condutas exemplares de Tony Ramos, Tarcisio Meira, Francisco Cuoco, Regina Duarte, a lista é grande, não tenho como citar todo mundo! O poder inebria e há quem confunda idolatria com poder. O caso mais comum é de gente anônima que se torna conhecida por causa de uma aparição na TV. Muitas dessas pessoas se perdem com essa fama instantânea, achando que passam a estar acima do bem e do mal. Não percebem que essa atitude só fomenta a decadência. O ídolo, que é parado por todos na rua, não tem poder algum. Ele é apenas idolatrado e por razões que a razão não explica, a qualquer momento e sem uma explicação racional, seu público o esquece porque encontrou um outro para “tietar”. O certo é quem se expõe demais sempre tem problemas.

“Quer mudar, mude, desde que não se perca o objetivo da lei”

No que diz respeito à proteção jurídica aos direitos autorais, as leis hoje em vigor em nosso país são suficientes para evitar litígios na Justiça?

S.F.D’A – Sobre essa matéria hoje há muitos projetos de lei em discussão e tantos outros anteprojetos engavetados e em tramitação no Congresso Nacional. Minha posição é clara e publicamente conhecida: advogo que temos que ter muito cuidado para que modificações em discussão não venham a prejudicar o autor. Desde o primeiro diploma legal brasileiro sobre direitos autorais, a Lei nº 5.988, de 14 de dezembro de 1973, aprovada no regime da ditadura militar, e a Lei 9610, promulgada em setembro de 1998 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, cujo ministro da Cultura era Francisco Weffort, a qual veio para alterar, atualizar e consolidar nossa legislação sobre direitos autorais,pode-se afirmar que ambas têm o escopo de beneficiar o autor. As modificações introduzidas na 9610/98 atenderam ao intuito de adaptar os direitos autorais à realidade contemporânea, preenchendo satisfatoriamente as lacunas existentes. Só para melhor contextualizar o leitor, o artigo 115 da Lei 9610/98 revogou os arts. 649 a 673 e 1.346 a 1.362 do Código Civil e as Leis nºs 4.944, de 6 de abril de 1966; 5.988, de 14 de dezembro de 1973, excetuando-se o art. 17 e seus §§ 1º e 2º; a Lei 6.800, de 25 de junho de 1980; 7.123, de 12 de setembro de 1983; a Lei 9.045, de 18 de maio de 1995, e demais disposições em contrário, mantidos em vigor as Lei nºs 6.533, de 24 de maio de 1978 e 6.615, de 16 de dezembro de 1978. Por esse motivo não defendo certas modificações que estão sendo propostas, pois vão representar, se aprovadas, retrocesso jamais havido na legislação pátria. Faz-se oportuno o pensamento do magistral professor Antonio Chaves, que dizia algo muito importante sobre o direito do autor, que ele vem a reboque das grandes invenções. Portanto, o autor de uma obra cênica deve gozar da mesma proteção que um inventor.

O senhor participou da elaboração de um anteprojeto justamente com esse foco?

S.F.D’A – Em nome da ABDA apresentamos um anteprojeto ao Ministério da Cultura para que o governo, os legisladores e toda a sociedade brasileira possam entender a única coisa que realmente tem importância: não podemos ter uma norma chamada de “Lei do Direito Autoral” ou “Lei do Direito do Autor” que venha a prejudicar um ou mais de seus direitos sobre a obra que criou. É um contrassenso inadmissível. Se o mundo atual demanda novas mudanças na ordem jurídica que rege as artes, há que se ter cuidado na feitura desse novo diploma legal para que as alterações propostas não venham em prejuízo do autor. Nas conversas com aqueles que têm o poder de decisão nessa área sempre que tenho a oportunidade de expressar meu pensamento digo-lhes: quer mudar, mude, adapte, melhore, desde que não se perca o objetivo da lei dos direitos autorais, que é proteger o autor da obra cênica. Imagine se é aprovado um dispositivo que exige que todos os autores estão obrigados a disponibilizar suas obras gratuitamente na internet depois de um certo tempo. Se o autor quer fazer essa cessão gratuita, isto tem que ser uma faculdade dele, não uma imposição legal. Não se pode tirar do autor ou limitar o seu uso e fruto do bem patrimonial que ele tem, a sua obra. Por isso afirmo que é um contrassenso fazer qualquer alteração que venha a contrariar o espírito da lei em vigor, que é o de defender o autor. O exemplo que gosto de dar é a lei de defesa do direito do consumidor. Ninguém ousaria introduzir nesse diploma legal uma alteração que prejudicasse o consumidor, bem como na lei que defende os interesses das crianças e dos adolescentes. Se há interesses de lobbies contrários aos direitos do autor que fazem pressão para que as regras sejam mudadas, que se faça isto em outra lei, não na que leva o nome de Lei dos Direitos Autorais.

“O litígio não é bom para nenhuma das partes”

O que o senhor pode nos dizer sobre esse novo ramo, o Direito do Entretenimento?

S.F.D’A – Na Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo leciono um curso sobre essa nova seara jurídica. Esse ramo é realmente novo no Direito brasileiro, conhecido internacionalmente como Direito do Showbusiness, matéria que tem despertado grande interesse em nossos advogados. Não é por acaso, pois esse ramo tem crescido de forma impressionante no exterior e também em nosso país, destino cada vez mais frequente de artistas das mais diversas nacionalidades. Um show musical, uma peça teatral, uma produção cinematográfica são exemplos de situações em que o advogado se depara com uma realidade contratual muito complexa. Além de inúmeras cláusulas que não podem ser esquecidas ou precisam estar muito bem especificadas, qualquer dessas apresentações de cunho artístico envolvem um número considerável de prestadores de serviços, que trabalham nos bastidores, e para cada um deles é preciso elaborar um contrato especifico. Para melhor entender essa realidade, gosto de levar meus alunos para o mundo real do showbiz. Um dia os convidei para ir a uma peça em cartaz em nosso teatro, que funciona dentro do shopping Frei Caneca, na capital paulista. Estava em cartaz uma peça com três atores em cena. Meus alunos ficaram espantados ao descobrir, conversando com o elenco e pessoal da área técnica, que haviam sido elaborados cerca de 30 contratos para a realização daquele espetáculo. Só para se ter ideia, havia contratos isolados não apenas com os atores em cena, mas com o tradutor do texto original em que a peça estava baseada, com o adaptador do texto para o teatro, com o diretor, o cenógrafo e tantos outros profissionais.

Por que o senhor faz questão de comparar esse novo ramo ao Direito Ambiental?

S.F.D’A – Se você voltar uma década no tempo, constatará que o Direito Ambiental era incipiente no Brasil. Hoje, ao contrário, a área é de grande importância e alguns de nossos doutrinadores e legisladores têm influenciado até mesmo normas e discussões na área ambiental em âmbito internacional. Da mesma forma vejo o Direito do Entretenimento crescendo em nosso país e ultrapassando fronteiras em um breve espaço de tempo. Recomendo a todo operador do direito familiarizar-se com este novo ramo em acelerada expansão. Há um livro que faz uma boa introdução nessa seara, pois abarca a complexidade das obras cênicas de forma muito acessível. Trata-se do Manual de Direito do Entretenimento, publicado pela Editora Senac, com apresentação de um de nossos maiores juristas, José Carlos Costa Netto, presidente da Associação Brasileira de Direito Autoral, a ABDA. Trata-se de uma coletânea com artigos assinados por expoentes da área e com ilustrações do talentoso Paulo Caruso. O artigo intitulado “Novas tecnologias e direitos autorais”, escrevi em coautoria com Andréa Francez e José Carlos Costa Netto. Recomendo esta obra porque foi elaborada justamente para auxiliar os que pretendem se embrenhar na produção cultural ou os que já atuam nela para que possam entender os seus pormenores legais. Para quem deseja envolver-se nesse segmento de mercado, muitas vezes encantador, é necessário compreender os trâmites jurídicos para a obtenção de direitos autorais; conhecer o funcionamento das relações trabalhistas com técnicos e artistas, as obrigações legais e as penalizações previstas. Saber principalmente como evitar problemas futuros. O Direito do Entretenimento deve ser regido pelo principio da prevenção, o litígio não é bom para nenhuma das partes.

“O artista estrangeiro tem contrato por obra certa”

O senhor é um frequentador assíduo de premières teatrais e cinematográficas. O advogado que quer militar nessa área também precisa estar mais perto dos palcos?

S.F.A. – Desde os tempos da faculdade, portanto há quase seis décadas, frequento teatro, cinema, shows, exposições, gravações de novelas, enfim, tudo o que diz respeito à expressão artística. Isto me dá enorme satisfação pessoal, mas foi e é graças a essas incursões que tenho domínio sobre as relações jurídicas possíveis no meio artístico. Quem tem interesse de atuar nesse segmento tem que passar a acompanhar in loco esses trabalhos para ganhar familiaridade com os negócios e profissionais que estão por trás e à frente dos produtos culturais. É impressionante a quantidade de contratos que são elaborados, todos muito específicos e cuidadosamente redigidos para evitar problemas futuros. O advogado precisa estar muito bem preparado para dar orientação completa ao cliente sobre problemas que ele pode vir a enfrentar. Enfim, fazer para ele uma radiografia preventiva, o que exige que ele tenha conhecimentos em áreas do direito tão diversas como tributária, civil, penal e trabalhista, só para citar alguns exemplos. As obras cênicas, à semelhança de outros campos de atuação, é preciso evitar ao máximo cair no contencioso. Não canso de dizer que este é um tipo de matéria em que é fundamental fazer advocacia preventiva, cuidando para que seu cliente não tenha problemas no futuro.

Atores e atrizes de nacionalidade portuguesa e nascidos na América Latina têm desempenhado papéis em nossas novelas. Como são seus contratos, diferem dos que são firmados com os artistas brasileiros?

S.F.D’A – Nosso escritório deu assistência jurídica a algumas dessas estrelas. O trâmite para os atores e atrizes estrangeiros em nosso país é igual para todos. Eles precisam primeiro obter uma autorização de trabalho, processo em que há o envolvimento e aprovação pelo Ministério do Trabalho e pelo Sindicato dos Artistas que atua na região onde ficarão domiciliados. As normas de contrato para esses artistas são as mesmas aplicadas para atores e atrizes brasileiros. É bom lembrar que o artista estrangeiro que faz uma propaganda aqui ou desempenha um papel numa novela tem um contrato por obra certa. Se há por parte da emissora de TV ou outro contratante o interesse de prorrogar sua atuação, será necessário o artista passar por todo aquele trâmite de novo, como se estivesse pleiteando sua primeira autorização de trabalho no Brasil. Não vale para eles simples adendos contratuais de prorrogação como a lei permite aos artistas de nacionalidade brasileira.

“O personagem é sempre uma criação do autor”

Situações como a exibição de novelas brasileiras no exterior, merchandising introduzidos nas tramas e personagens que o artista interpreta em programas humorísticos trazem à tona aspectos dos direitos autorais e de remuneração. Essas questões estão pacificadas em nossa jurisprudência?

S.F.D’A – De modo geral, sim. Nossa lei assegura que o ator deve receber a cada exibição da obra, seja a novela exibida dentro ou fora do país. Esta participação é previamente acertada em contrato. A praxe é de 10% do valor sobre o salário cheio, corrigido monetariamente. Na venda da obra ao exterior existe uma conta que só o computador faz. A equação é quase um enigma. Fixa a participação em 5% do valor da venda da obra cênica ao exterior, valor este que será rateado por todos os participantes da novela na proporção do quanto cada um percebia em salário. Às vezes o valor é tão irrisório que não compensa o artista ir buscá-lo de imediato. Ele espera até que a venda da novela seja feita para vários países para acumular um valor significativo e justificar sua ida à emissora para resgatar seu crédito. Já o merchandising, marcas e produtos introduzidos de forma simpática nos enredos, é algo hoje muito importante, pois essa verba pode pagar em alguns casos a produção de uma novela inteira! Os atores recebem uma parte desse dinheiro, bem como o autor da trama e o diretor. Importante notar que o artista tem o direito de não querer falar algo que agrida suas convicções e valores. Como tudo é acertado com antecedência, dificilmente acontece esse tipo de desconforto. O personagem é sempre uma criação do autor, ele é seu único dono. Esse entendimento é pacífico em nossa jurisprudência. A TV tem direito de transformá-lo em uma obra audiovisual. Já o ator ou atriz que interpreta o personagem, mesmo que colabore com a criação de um bordão ou qualquer outro recurso, não tem direito de uso sobre o personagem. Poderá interpretá-lo em outras situações, como em propagandas, somente sob a concordância explicita do autor.

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[Simone Silva Jardim é jornalista, São Paulo, SP]