Mais uma tragédia na vida dos brasileiros. Como sempre, desastre anunciado face à desobediência contumaz da legislação – no caso específico, sobre o funcionamento das casas de espetáculo. O grave incêndio teve início por volta das 2h30 do domingo (27/1) na boate Kiss, no centro do município rio-grandense-do-sul Santa Maria, conhecido como cidade universitária por abrigar 11 instituições de ensino superior, dentre as quais se destaca a renomada Universidade Federal de Santa Maria.
De imediato, a mídia nacional, ênfase para os meios televisivos e eletrônicos, se pôs de prontidão. Como sempre, a postura de jornalistas, blogueiros e/ou apresentadores (no caso da TV) variou perceptivelmente de um veículo para outro ou de um profissional para outro. A Globo, por exemplo, em linhas gerais, manteve a linha de confrontação com outros infortúnios ocorridos no cenário brasileiro e internacional, até porque o incêndio gigantesco está sendo considerado como o terceiro mais grave no mundo da mesma natureza (casas de show), diante do número de vítimas fatais – em torno de 232 cidadãos, na maioria, jovens de 16 a 20 anos. Isso justifica a repercussão imediata na grande imprensa do mundo inteiro, em países dos vários continentes, incluindo Espanha, China, Japão, Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha.
Como sempre, tanto a Globo como outros veículos de comunicação enfatizaram a questão da legislação em vigor, evidenciando que, no nosso caso, não faltam leis, e, sim, o cumprimento das prescrições já existentes. Isso é evidente no momento da constatação de que os alvarás de funcionamento e de prevenção da Kiss estavam vencidos. No entanto, a bem da verdade, no âmbito da Globo, tal como se deu no Sistema Brasileiro de Televisão, houve flagrantes desacertos profissionais: destaque para a pergunta feita por um dos repórteres da Globo News ao reitor da UFSM sobre a responsabilidade da instituição, uma vez que se tratava de uma festa universitária. Ora, é insensatez imaginar que administradores universitários podem reger a vida noturna de seus estudantes… Aliás, foi ainda na Globo que Faustão, com seu vozeirão devidamente treinado para dimensionar os acontecimentos, afirmou algo mais ou menos assim: daqui em diante, os pais viverão pânico permanente com a saída dos filhos para as noitadas. É o caso de se perguntar: na atualidade, há tranquilidade na noite brasileira em recantos das metrópoles ou das cidades de porte médio e pequeno?
Um inquérito policial de “alto nível”
Também como sempre, foi a vez de a mídia apontar acusados. No SBT, desde o início, a preocupação estava em listar responsáveis. Indo além dos relatos, as perguntas dirigidas a alguns dos jovens sobreviventes assumiram tom bastante tendencioso. Os apresentadores da tarde insistiam para que os depoentes acusassem seguranças e proprietários. Na realidade, uma tragédia de tamanha proporção não comporta “um culpado”. Há uma série de envolvidos, os quais, numa hora ou noutra, foram mencionados pela mídia de plantão. Os proprietários da boate não podem ser isentos de culpa: violaram as leis de alvará de funcionamento; não seguiram as recomendações do Corpo de Bombeiros na última vistoria; não treinaram seus seguranças; não abriram as saídas de emergências… E o que dizer do comportamento dos componentes da banda Gurizada Fandangueira, responsável por um arriscado show de pirotecnia num verdadeiro alçapão com superlotação de mais de mil pessoas? Pagaram um preço alto. Indo além do envolvimento no incêndio assassino, o grupo perdeu seu integrante mais jovem, Danilo Jaques, menos de 30 anos.
E, como sempre, está em evidência, como destacado por toda a mídia nacional, o descaso das autoridades. A Prefeitura foi nitidamente negligente. Permitiu que a boate continuasse aberta, apesar do descumprimento das normas imprescindíveis de segurança. Porém, entre idas e vindas, vozes entrecortadas e feições contritas dos jornalistas, textos impregnados de lástima e compaixão, a mídia brasileira e mundial, em qualquer suporte, foi unânime em ressaltar o comportamento apropriado da presidenta Dilma Rousseff que, de imediato, abandonou uma reunião da cúpula Celac-União Europeia, em Santiago do Chile. No mesmo dia, 27, seguiu para Santa Maria, onde visitou feridos e parentes das vítimas, decretando luto oficial de três dias no país, além de disponibilizar recursos necessários para minimizar o ocorrido. De forma similar, a mídia como um todo destacou o emocionante minuto de silêncio nos estádios de futebol do Brasil afora.
Vemos, pois, que, como sempre, os meios de comunicação adotam atitudes acertadas que se mesclam com o desacerto de atuar como juízes de sentenças imediatas e sem apuração devida dos fatos. É de se esperar para ver – todos nós, jornalistas ou não – como se dará o prometido “inquérito policial de ‘alto nível’ para o esclarecimento das causas” da ocorrência funesta, palavras literais do governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. É ver para crer!
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[Maria das Graças Targino é pós-doutora em Jornalismo, Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica]