Uma análise de enquadramento (framing analysis) sobre a cobertura das eleições presidenciais brasileiras de 2010 por grandes jornais e revistas online, incluindo colunistas e blogueiros, revelou as preferências ideológicas dos jornalistas e das empresas para as quais trabalham. O confronto direto entre o então presidente Lula e os maiores grupos jornalísticos do país ficou evidente durante a cobertura política e escalou ao ponto de a mídia brasileira dar pouco destaque à eleição da primeira mulher na presidência do quinto maior país do mundo.
Enquanto o presidente Lula reclamava do excesso de liberdade de imprensa, os jornalistas transformaram a questão em um dos principais focos da cobertura política. De certa forma, viraram a pauta e deixaram de cobrir aspectos essenciais sobre as posturas dos candidatos e os seus planos de governo.
Muitas teorias procuram explicar como o jornalismo constrói a realidade do dia a dia, principalmente as questões políticas. A mais interessante chama-se framing (enquadramento), uma teoria derivada de outra mais conhecida chamada agenda-setting. As duas teorias surgiram na década de 1970 nos Estados Unidos e se inspiraram nas ideias do jornalista norte-americano Walter Lippman, que, na década de 1920, dizia que a imprensa criava imagens na cabeça das pessoas sobre outras pessoas, temas e lugares.
No década de 1960, Bernard Cohen retomou a ideia de Lippman e concluiu que a imprensa dizia ao público não o que pensar, mas sobre o que pensar, exatamente por oferecer um cardápio do que acontece no mundo selecionado de acordo com seus próprios interesses e limitações.
Daí surgiu a conhecida teoria agenda-setting (agendamento), primeiramente desenvolvida pelos pesquisadores Maxwell McCombs e Donald Shaw ao comprovarem a correlação entre o que os habitantes de uma pequena cidade da Carolina do Norte consideravam como os temas mais importantes da campanha eleitoral e os temas que a mídia publicava. A teoria se tornou muito popular e deu origem a outras como o framing, que estendeu a ideia de agenda-setting ao propor que a mídia não apenas diz ao público sobre o que pensar sobre pessoas, temas e lugares, mas também como pensar sobre eles.
Padrão reconhecido
Vários fatores influenciam como o jornalismo trata diferentes temas, incluindo a política. Eles incluem as preferências pessoais dos jornalistas, as rotinas das redações (as limitações de tempo/espaço, os valores que orientam a noção daquilo que é noticia, a relação dos jornalistas com as fontes etc.), as políticas das empresas de comunicação, fatores externos como lobby, a ação das elites, dos relações públicas e dos anunciantes, as pressões de governos e políticos, da igreja, de ONGs e muitos outros atores e, finalmente, a ideologia da sociedade onde cada jornalismo opera e que influencia todos os níveis de influência citados acima.
Nos últimos 30 anos, diferentes pesquisadores têm compilado listas mais longas de fatores que influenciam como o jornalismo enquadra os temas que escolhe como manchete.
Utilizando esse embasamento teórico, minha pesquisa “Online Coverage of the 2010 Brazilian Presidential Elections“ analisou 650 itens, incluindo notícias políticas, colunas e postagens de blogs, num total de 17 fontes de noticiário político colhidos num período de 30 dias – duas semanas antes do primeiro turno das eleições presidenciais de 2010, uma semana depois do primeiro turno, uma semana antes do segundo turno e dois dias extras depois do segundo turno.
O material foi todo coletado online uma vez ao dia dos portais UOL, Estadão e G1, das revistas Veja e IstoÉ, do material produzido por sete colunistas e blogueiros publicados por essas organizações jornalísticas, e ainda de duas colunas políticas publicadas pelo Jornal do Brasil e pela Tribuna da Imprensa e uma coluna transmitida pela rádio CBN e disponível no website da emissora.
Entre os colunistas e blogueiros (ficou difícil distinguir quem é quem) selecionados para este estudo estavam Josias de Souza e Fernando Rodrigues (UOL), Rolf Kuntz (Estadão), Ricardo Noblat (G1-Globo), Reinaldo Azevedo e Augusto Nunes (Veja), Paulo Moreira Leite e Leonardo Attuch (IstoÉ), Villas Bôas-Correa, o mais antigo comentarista político do Brasil, na época publicando suas colunas no Jornal do Brasil; Carlos Chagas, então publicando suas colunas na Tribuna da Imprensa; Arnaldo Jabor, do sistema de rádio CBN; e ainda o conteúdo das colunas “Estadão Radar Político” e “Veja Radar Online”.
A análise dos 650 itens resultou em 1300 frames (unidades de enquadramento, por falta de expressão melhor), dos quais 40% vieram da cobertura política e 60% das colunas e postagens. As unidades de enquadramento foram codificadas seguindo o padrão utilizado em outras pesquisas: episódicas (eventos e estratégias das campanhas, anúncios dos candidatos, troca de acusações etc.), temáticas (temas, programas e plataformas dos candidatos), corrida eleitoral (horse race, o que diziam os institutos de pesquisa e especulações de quem estava à frente nas pesquisas) e aquelas centradas na personalidade dos candidatos (comportamento, estilo de vida, hábitos etc.).
Resultados
A cobertura política das eleições presidenciais de 2010 foi predominantemente temática (47% dos enquadramentos), seguida de enquadramentos episódicos (33,5%) e, em menor incidência, a corrida eleitoral (11,5%) e a personalidade dos candidatos (7,8%). O resultado é interessante se comparado a pesquisas semelhantes nos Estados Unidos, onde frequentemente predominam os enquadramentos episódicos, a corrida eleitoral (as pesquisas de opinião são manchete todo o dia) e a personalidade dos candidatos (o eleitor norte-americano quer saber tudo sobre a vida pessoal dos políticos).
Os enquadramentos temáticos se concentraram principalmente na questão da liberdade de imprensa (39,7%), que ganhou ênfase depois que o presidente Lula afirmou, em setembro de 2010, que “derrotaria os jornais e revistas que se comportavam como partidos políticos”. A guerra entre governo e parte da mídia se acentuou quando o escândalo envolvendo a então ministra da Casa Civil Erenice Guerra tomou as páginas de jornais e revistas.
Se por um lado a mídia desrespeitava os princípios jornalísticos ao se basear em suposições e especulações para denunciar vários escândalos envolvendo corrupção política, por outro lado o presidente desrespeitava a liberdade de imprensa e atacava empresas jornalísticas. A tensão cresceu até o fim da campanha.
Outros enquadramentos mais frequentes foram os temas sociais e econômicos e aqueles ligados ao desenvolvimento e infraestrutura (24,2%), à corrupção (22.7%) e ao aborto (13,6%). A porcentagem de enquadramentos relacionados aos temas sociais e econômicos teve um viés curioso. Em sua maioria, referiam-se ao fato de os candidatos não esclarecerem seus programas de governo, concentrando-se em promessas vagas.
Colunistas e blogueiros sublinharam que apesar de os candidatos Dilma Rousseff e José Serra serem economistas, nenhum dos dois discutiu problemas econômicos. Outros apontaram que a economia brasileira era um tema abstrato para eleitores e candidatos. O tema aborto virou manchete quando a cobertura eleitoral parecia esgotada e foi discutido de forma sensacionalista. O tema apareceu no noticiário, mas esteve ausente nas páginas de colunistas e blogueiros, que preferiram se concentrar na corrupção.
O tom da cobertura política foi notoriamente negativo. O PT recebeu a maior carga de criticismo (73,5%) contra 17,6% de referências neutras e apenas 8,7% de referências positivas. Já o PSDB recebeu uma carga crítica de 54% contra 33% de referências neutras e 13% de referências positivas. O Partido Verde recebeu pouco espaço na mídia (6,2%), mas sua candidata Marina Silva foi tratada com respeito e curiosidade. O tom dos enquadramentos relacionados a Marina Silva alternaram-se entre o positivo e o neutro. Marina Silva foi a candidata mais poupada pela crítica, seguida do candidato José Serra. O presidente Lula foi o maior alvo das críticas, enquanto a candidata Dilma Rousseff foi criticada por nunca ter concorrido a uma eleição no passado.
Além disso, o estudo analisou até que ponto a cobertura temática ofereceu uma perspectiva mais crítica/adversária ou mais analítica/interpretativa. O resultado foi enfático: 72,8% da cobertura temática (liberdade de imprensa, corrupção, problemas sociais e econômicos) foi crítica/adversária, enquanto 50% da cobertura episódica (eventos e estratégias das campanhas, anúncios dos candidatos, troca de acusações) adotou o mesmo tom. Somente 20% dos enquadramentos temáticos e episódicos optaram por uma perspectiva analítica/interpretativa. O índice de neutralidade no tratamento dos grandes temas foi baixo (7,5%), mas chegou a 31% nos enquadramentos episódicos.
Nova identidade
A cobertura eleitoral foi polarizada, com algumas organizações jornalísticas chamando os candidatos de demagogos e populistas e alertando que os eleitores aceitavam a impunidade em troca de desenvolvimento econômico, enquanto outras defendiam candidatos alinhados às suas linhas editoriais. A divisão político-partidária entre as empresas jornalísticas e entre os próprios jornalistas foi evidenciada não só pela análise de enquadramento, mas também pelos comentários de profissionais entrevistados pela autora, cujo conteúdo será discutido em outro trabalho.
O estudo demonstrou que a cobertura online das eleições presidenciais de 2010 é um forte exemplo de framing sustentado por razões ideológicas. Desde o escândalo Collorgate, em 1992, o jornalismo brasileiro tornou-se campeão das denúncias de corrupção na arena política, muitas delas sem o devido selo do jornalismo investigativo. O tempo passou, a corrupção continuou e novas gerações entraram na profissão hoje concentrada na produção online. O momento é apropriado para uma nova discussão sobre o papel do jornalismo.
No contexto internacional, o Brasil é visto como um país onde a mídia é parcialmente livre, apesar dos avanços na legislação nos últimos anos. Freedom House, uma organização que mede o grau de liberdade de imprensa no mundo, considera que o Brasil está à frente da Argentina, mas atrás do Chile e do Uruguai em relação ao nível de liberdade de imprensa.
Sem intenções de generalizar o comportamento da mídia em geral e de seus milhares de dedicados profissionais, tudo indica que os jornalistas brasileiros buscam uma nova identidade que reflita as mudanças positivas pelas quais o país vem passando e, ao mesmo tempo, sinalize as mudanças tão necessárias que ainda não aconteceram. O tom combativo, partidário e adversário pode afastar leitores que talvez prefiram chegar às suas próprias conclusões com base em fatos bem documentados. Nas próximas eleições, talvez seja mais produtivo investir em análise e interpretação.
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[Heloiza G. Herscovitz é jornalista, pesquisadora e professora de jornalismo da California State University Long Beach, presidente da International Communication Division da AEJMC (Association for Education in Journalism & Mass Communication), a principal organização de pesquisa em jornalismo e comunicação dos Estados Unidos. A versão completa desta pesquisa foi publicada em inglês, em dezembro de 2012, pela revista acadêmica portuguesa Estudos em Comunicação, disponível aqui.]