“É necessário entrevistar imediatamente as pessoas afetadas por uma situação traumática? Que valor, perene e confiável, terão as informações prestadas por pessoas desorientadas ou em estado de choque?” As questões, que aparecem no livro Covering Violence (Columbia University Press, 2000), de William Coté e Roger Simpson, tocam diretamente em um ponto que a maior parte da imprensa brasileira apressou-se em varrer para debaixo do tapete nas horas que se seguiram à tragédia ocorrida em Santa Maria.
Os relatos dos repórteres atropelavam-se, passando por cima de preceitos básicos da profissão na tentativa de ora explicar (saliento o verbo explicar) o inexplicável, ora no afã de buscar vilões e apontar heróis. A cobertura até agora tem se mostrado sintomática da dificuldade dos jornalistas de abordar os temas da atualidade com a complexidade que lhes é característica.
Como esperar que as informações sejam críveis e rigorosas se enunciadas por pessoas em choque? Coté e Simpson lembram que, em casos trágicos como este, é preciso que o jornalista verifique cada dado da história com cautela redobrada. “Os jornalistas precisam saber”, escrevem, “que os sobreviventes não estão pensando com clareza.” Por conta disso, as informações que prestam podem simplesmente estar completamente erradas.
Oefeito do choque
O anúncio, logo pela manhã, de que seguranças fecharam as portas da boate, impedindo a saída de todos, é um bom exemplo da condução irresponsável das entrevistas com sobreviventes e da veiculação temerária e apressada de informação sem checagem. A princípio não havia nem sequer um cruzamento mínimo de dados nem imagens de câmeras nem a versão, obrigatória, dos próprios seguranças – um dos quais foi entrevistado apenas horas depois. Como, então, disseminar uma informação tão sensível? A caça às bruxas havia começado.
O respeito às vítimas, sobreviventes e familiares tornou-se secundário diante do afã do furo – não apenas entre jornalistas, mas também nos programas de auditório e variedades. Em pleno Domingão do Faustão, o apresentador interrompeu, ao vivo, o depoimento da irmã de uma garota morta na tragédia para questionar como conseguia se manter “tão calma e equilibrada” diante daquela terrível perda.
Mau gosto à parte, Coté e Simpson lembram que a “calma” aparente de uma pessoa afetada por tragédia não quer dizer rigorosamente nada. “Uma testemunha ou sobrevivente pode parecer calma ou mesmo despreocupada durante uma entrevista. Depois, pode não se lembrar de ter sido entrevistada e não entender como o jornalista obteve os detalhes da história. Esse esquecimento pode se estender aos próprios detalhes do incidente.” Em suma, cada vítima lida com a tragédia à sua maneira, e, embora haja alguns padrões recorrentes, é impossível para o jornalista avaliar, em campo e sem treinamento, o efeito do choque.
Silêncio e controle
Embora no fundo o que se esteja cobrando constantemente seja bom jornalismo, ético e responsável em qualquer situação, a verdade é que a cobertura de eventos traumáticos requer a subversão de algumas práticas jornalísticas consagradas.
Uma delas: o controle da entrevista. Antes de realizá-la, Frank Ochberg (A primer on covering victims, Nieman Reports, Vol. 50) sugere que se dê, explicitamente, total controle da entrevista à vítima, alertando-a, inclusive, que a lembrança do ocorrido pode ser dolorosa. Também sugere “reassegurar à vítima que a entrevista abordará fatos concretos, e não os efeitos da tragédia no entrevistado”. Recomenda ainda que o jornalista dê tempo para que a vítima recobre o equilíbrio mental e aguarde, pacientemente, por momento oportuno. A mais simples e poderosa das sugestões é: tente se colocar no lugar dela (nesse sentido, já ouvi pessoalmente depoimentos de colegas jornalistas que, ao serem abordados para dar uma entrevista diante de um episódio traumático, como a perda de um familiar, chocaram-se com a pressa e frieza dos repórteres).
Outro procedimento citado por Coté e Simpson e que aparece no Brasil em pesquisa de doutorado de Mara Rovida, na Universidade de São Paulo, pode ser encarado como uma espécie de rebeldia de reportagem. O repórter pode, diante de uma crise, optar por manter o silêncio – seu e/ou da vítima. Em sua tese em andamento, Mara pesquisa o instigante caso de uma cobertura realizada pelo repórter da Rádio SulAmérica Ronaldo Rodrigues. Ao cobrir um acidente com um caminhão que ameaçava tombar em plena marginal Tietê, Rodrigues optou – e enunciou ao vivo na Rádio a sua opção – por não entrevistar o caminhoneiro, simplesmente por perceber que o homem estava transtornado demais para falar (horas antes o motorista havia sido assaltado e perdido todo o dinheiro e documentos; para completar, sua carga, ameaçada de tombar, não era segurada). Resultado: ouvintes ligaram a manhã inteira para a rádio para parabenizar a postura ética, sensível e humana do repórter que se calou.
Para melhor
Coté e Simpson chancelam esse tipo de atitude. Muitas vezes, dizem, o melhor que o repórter tem a fazer diante de uma tragédia é silenciar. E respeitar o silêncio dos sobreviventes.
O argumento vai ao encontro da declaração da psicóloga Roseli Goffman em entrevista ao portal Comunique-se, onde afirma que vê na cobertura de Santa Maria “uma exploração do luto público”. “O luto precisa de silêncio. Você vê pessoas em choque sendo entrevistadas.” Roseli diz ainda que a “intenção de encontrar um culpado é sempre precária. Não se avança na questão do humano e na questão da civilização. A culpabilização é sensacionalismo, é violação da privacidade, é geração de violência e de ódio”.
A declaração está em consonância com as muitas vozes que comigo defendem a necessidade de praticarmos um jornalismo mais complexo. Mais afeto a compreender o mundo, na medida de suas limitações intrínsecas, do que a “explicá-lo” arrogantemente. É preciso ainda combater a arraigada ideia de monocausalidade e de relação causa-efeito nos fenômenos do mundo social. Essas são verdadeiras pragas que assolam não apenas o jornalismo, mas o pensamento contemporâneo – e nesse sentido lembramos a importante contribuição do filósofo francês Edgar Morin, autor de Introdução ao Pensamento Complexo.
Não é possível levar a sério os que querem atribuir aos seguranças a tragédia, como se tentou fazer de início. Não é possível também compactuar com emissoras como a Rádio Caiobá FM, em Curitiba, e tantos veículos Brasil afora, que fazem promoções em que o ouvinte tem de responder “quem é o culpado” pela tragédia. A que esse tipo de culpabilização apressada, rasteira e sem discussão nos levará? A bodes expiatórios, certamente, mas não a maiores avanços.
Com maior investimento em reportagens complexas, tempo e espaço solidários às vítimas, demonstração explícita de afetos dos repórteres (que, afinal, não são máquinas nem deuses), discussão de “causas” múltiplas e por vezes o reconhecimento de que não sabemos muito e de que as tragédias do mundo não são passíveis de serem explicadas por uma objetividade tacanha avançaremos, enfim, no debate e na construção de uma sociedade melhor.
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[Renato Essenfelder é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e professor da ESPM-SP e da Universidade Presbiteriana Mackenzie]