Crianças feridas correndo nuas na guerra do Vietnã; manifestante morto em frente à cúpula do G8; meninas iraquianas e afegãs feridas; vítimas do tsunami na Indonésia; corpos de judeus nos campos de concentração; feridos e mortos no campus da Virginia Tech, nos Estados Unidos, sendo carregados em pedaços; corpos dos mortos do naufrágio criminoso do Bateau Mouche no Réveillon de 1988, dispostos sobre o pier apóso resgate; mãe segurando o filho assassinado no Centro do Rio, lembrando a escultura Pietà, de Michelangelo; um bombeiro carregando um bebê morto ensanguentado nos braços após ataque à bomba em Oklahoma – imagem vencedora do Prêmio Pulitzer, em 1996; massacre de sem-terra no Eldorado dos Carajás, capa do Jornal do Brasil no mesmo ano; jovens deitados no chão da boate em Santa Maria, após morrerem intoxicados, foto publicada na capa de O Dia na segunda-feira (28/1). Imagens que sintetizam as grandes tragédias do mundo, causadas pela estupidez humana. Sensacionalismo? Jornalismo.
As imagens acima citadas estão vivas na minha cabeça, muitas entraram para as minhas gavetas mentais quando eu ainda era criança, e não jornalista. Nunca tive a curiosidade mórbida de vê-las, mas elas me foram apresentadas e assim uma parte da história está aqui gravada no arquivo. Caso eu tivesse alguma dificuldade de memória, poderia passar a conhecê-las ou revê-las facilmente numa simples busca no Google. Em geral, são imagens que mostram até onde a maldade, a ganância e a sordidez do homem pode ir. Culpar os jornalistas que as divulgam é um direito de opinião, mas é também hipocrisia.
Denúncia da hipocrisia
A publicação da imagem dos mortos em Santa Maria, sequência bombardeada ao longo do dia na TV e na internet e revista na capa do jornal, abriu um debate nas redes sociais. O bombardeio começou de madrugada, na página do jornal no Facebook, com muitas pessoas impressionadas com a cena: um turbilhão contra, “em respeito aos mortos e seus familiares”; um turbilhão a favor, em nome da denúncia, do “ver para jamais esquecer”. E não que isso invalidasse a publicação: mas não há um só rosto de vítima virado de frente para a foto. Centenas de comentários e compartilhamentos contra e a favor. A opinião na internet me parece o cara armado com um 38: todo mundo, atrás da tela, fica cheio de coragem.
Porém, o resultado foi positivo, pois levanta um questionamento. E o questionamento maior deve ser: a verdade é aquela ali exposta, ela não é nem um pouco bonita, mas e agora, quem vai pagar a conta? (como perguntou a manchete do jornal Meia Hora). Se não pararmos de repetir a ideia dos outros sem pensarmos na nossa própria, sem entendermos os nossos próprios argumentos, nós acabaremos pagando essa e outras contas. O jornalismo vai pagar. O povo vai sentir na pele. Afinal, por que só agora, depois da tragédia, autoridades de diversas capitais do país resolveram fiscalizar as condições de segurança de suas casas noturnas? Não seria melhor que isso fosse uma rotina obrigatória?
Gostando ou não de se ver o que se viu, a capa de O Dia denunciou o que a hipocrisia queria fingir que não existe. O leitor tem o direito de ver e ser contra ou a favor. Mas é importante que reflita.
***
[Karla Prado é jornalista e editora do jornal O Dia, Rio de Janeiro, RJ]