Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma crítica à abordagem da mídia

Urgente

Incêndio em Santa Maria

Bombeiros tentam resgatar vítimas em boate

Sinalizador usado por banda provocou incêndio

Os seguranças barraram as portas

Os seguranças ajudaram a resgatar vítimas

Voluntários estão quebrando as paredes

São mais de 250 mortos

São 245 mortos

São 239 mortos

São 235 mortos

São 231 mortos

A maioria dos mortos são jovens

Festa de estudantes da Universidade Federal de Santa Maria

Show da banda gurizada fandangueira

Confira imagens exclusivas do interior da boate

Veja antes e depois da boate

Gritávamos fogo, fogo

Havia muita fumaça, em questão de segundos não se via mais nada

Entenda como se morre por asfixia por fumaça tóxica com nosso especialista convidado

Isso que estamos vendo no chão são os corpos das vítimas, aparentemente sem queimaduras, mortos por intoxicação

Chegaram os caminhões frigoríficos para levar os corpos

Confira mais imagens dos corpos sendo resgatados

Imagens exclusivas acabam de chegar mostrando o interior da boate na chegada dos bombeiros

Há uma montanha de corpos nos banheiros

Confira mais imagens da tragédia, observem como muitas vitimas perderam suas roupas durante o resgate

É uma tragédia

Uma fatalidade

Meus sentimentos às vítimas

Pray for Santa Maria

Estamos prestando todo o apoio

Iremos apurar as causas

É um domingo de imensa tristeza

Todo o país se solidariza com as vítimas

A culpa é do segurança

A culpa é do dono da boate

A culpa é da banda

A culpa é da bebida

A culpa é do bombeiro

A culpa é do prefeito

A culpa é do governador

A culpa é da Dilma

A culpa é do Lula

Divulgada a lista de nomes das vítimas fatais, confira os perfis de quem morreu

Mostramos com exclusividade as ultimas fotos e tweets postados pelas vítimas

Perfil do dono da boate recebe mensagens de protesto, confira

São 140 feridos

São 135 feridos

São 112 feridos

São 90 feridos em estado grave

Jovem utiliza o Facebook para pedir socorro

Os celulares tocam nos bolsos das vítimas fatais, afirma o coronel

O celular de uma vítima tinha 104 ligações perdidas da mãe

Namorados morrem abraçados

Confira agora o sofrimento das famílias que perderam parentes e amigos

Qual o sentimento nessa hora?

Vejam o choro e desespero das mães

Pai proíbe filho de sair para a festa e salva sua vida

A multidão de parentes, amigos e voluntários se reúne no ginásio onde estão enfileirados os corpos para reconhecimento.

O alvará estava vencido.

Tomaremos todas as providências.

Os culpados serão punidos.

Daremos início a uma intensa fiscalização de bares e casas noturnas

Os estabelecimentos que não tiverem todas as condições de segurança serão fechados.

Os de anônimos do dia a dia

Essas frases permearam praticamente toda a cobertura realizada pela imprensa televisiva e pelos grandes portais de notícias na internet. É evidente que a tragédia de Santa Maria abalou profundamente a todos nós, brasileiros, mas quero pedir licença, com profundo respeito aos familiares e amigos das vítimas, para tratar de um assunto transversal a este acontecimento. Trata-se, de um lado, de realizar uma crítica à abordagem da imprensa televisiva e dos grandes portais e jornais na internet, e de outro alertar para que este episódio não sirva de instrumento para limitar o acesso à arte e à cultura.

No primeiro caso, acredito que o episódio foi abordado pela imprensa em geral de maneira extremamente sensacionalista, na medida em que exibia um excessivo número de imagens em looping dos “corpos” das vítimas em detalhes. Sem o característico desfoque, era possível o reconhecimento por parte de amigos e familiares, extrapolando o limite de expropriação justificada por um suposto interesse público. A meu ver, a forma como o jornalismo televisivo e de grandes portais cobriram o incêndio foi de um profundo desrespeito, de uma macabra narrativa de terror, tentando transformar as subjetividades através do medo e expropriando valor da tragédia.

Mais marcada que a perda de um ente querido é a dor de ter que conviver com as imagens e a narrativa produzidas pela imprensa televisiva e pelos grandes sites, expondo as entranhas desta tragédia a todo momento. Para contar os fatos, não era necessário recorrer às imagens em detalhes dos jovens vitimados, desumana como uma cobertura de guerra, e produzir um discurso extremamente sensacionalista. Não é preciso ter informação em tempo real se ela está errada ou não é confirmada. A tragédia nos sensibilizou independente das imagens, que potencializaram e carregaram consigo discursos e enunciados, mas pela gravidade de um acontecimento, que poderia terminar de outra forma, mas que acabou furtando jovens vidas humanas. A sensibilidade que me mobiliza e me solidariza não acomete somente nestes casos, mas também se une a revolta no dia-a-dia das mortes de milhares de anônimos no Brasil, no Oriente Médio, na África, etc… que somam apenas estatísticas para as redes de TV.

Culturas minoritárias

Quem mais expropriou financeiramente nesta tragédia não foi o segurança, nem o dono da boate, mas os canais de televisão e os grandes portais na internet, tentando capturar a audiência e contando os cliques e pageviews aos anunciantes. Um espetáculo criado que, com certeza, rendeu muito com anúncios direcionados, e informações novas em tempo real para atrair a atenção do telespectador. Um grande mercado de catástrofe que irá espremer estas vítimas durante semanas e meses, até extrair a última moeda de suas lágrimas.

Voltemos ao segundo ponto, do discurso. O enunciado ditado através da narrativa da imprensa televisiva e dos grandes portais a respeito da tragédia em Santa Maria me parece correr o risco de se transformar numa caça às casas de shows e de espetáculos no Brasil, espaços culturais, populares, undergrounds. Temos que tomar cuidado para não repetir o episódio argentino, que fechou diversas casas de shows underground por não cumprirem as regras de segurança depois de um incêndio em 2004.

Este enunciado pode levar a um fortalecimento de uma cultura majoritária, narrada principalmente pela televisão e grande mídia online, que possui mais condições financeiras de se adequar aos critérios de segurança estabelecidos, e por outro lado uma tentativa de enfraquecimento de culturas minoritárias, underground, populares, etc., dotadas de menos recursos financeiros e que teriam sérias dificuldades de conseguir as licenças necessárias para funcionamento.

Alternativas para a continuidade

Imagine um circo popular. Não falo do Cirque du Soleil, mas aquele circo que alimenta a imaginação e a criatividade das crianças nos rincões do Brasil, terá que perder seu espetáculo de pirofagia? E os redutos undergrounds, com suas instalações precárias, que inclusive são imanentes ao próprio valor da cultura, terão que se adequar? E os bailes em comunidades ribeirinhas, populares e da terceira idade? E os espaços culturais nas periferias do Brasil? Todos eles terão que fechar? Como, se nem os prédios públicos seriam aprovados em uma minuciosa e rigorosa inspeção?

É recorrente a reclamação de donos de estabelecimentos artísticos e culturais em relação à dificuldade e morosidade em se conseguir o alvará de funcionamento e segurança, além de relatos de cobrança de suborno por fiscais, para se fazer vista grossa, e nesse sentido não seria interessante regularizar todas as situações para garantir a renda extra. Antes de se decretar a possibilidade de fechamentos de locais é necessário criar uma política de desburocratização dos processos para emissão de alvarás e licenças de funcionamento.

Entretanto, algumas manifestações culturais não deixarão de acontecer, seja com quais condições estiver, com ou sem licenças, e na minha opinião assim devem ser. Não falo necessariamente de espaços que visam o lucro através de entretenimento cultural majoritário, mas espaços que são potencializadores de culturas minoritárias. O circo, a casa de shows underground ou os bailes populares, as manifestações minoritárias devem prosseguir acontecendo, principalmente porque há um interesse cultural, e não uma finalidade de acúmulo de capital, e não podem ser proibidos ou fechados, mas sim, devem se buscar alternativas para suas continuidades.

Futuro arriscado

Por outro lado, o discurso entoado pela imprensa televisiva e online leva também a possibilidade de cerceamento da liberdade dos jovens, criando uma atmosfera de medo, afetando e sensibilizando os pais a serem mais rígidos nos limites impostos aos filhos, evitando os filhos “saírem de casa”, saírem para o mundo, tomarem as ruas e suas vidas, em nome da segurança. Mais segurança = Menos liberdade. Ambos os discursos são extremamente conservadores de uma política que busca cada vez mais pautar nossas vidas em torno de objetivos que transcendem os nossos desejos e que resumem todas as nossas diferenças em torno de um modelo majoritário de “como viver bem e feliz”.

Acredito no bom senso acima de tudo, e acredito que foi isso que faltou tanto no acontecimento da tragédia (bom senso para entender os riscos de acender um sinalizador em local fechado, para perceber que não eram pessoas querendo dar calote, para liberar e desbloquear com agilidade a saída, para não superlotar a casa…), como na abordagem dos meios de comunicação (bom senso para fazer uma cobertura mais humana, não exibir as imagens da forma como foram exibidas, não chamar de “corpos” os entes queridos, para realmente respeitar a dor de parentes e amigos, para não divulgar informações falsas, para não expropriar as imagens e a dor das vítimas em nome da audiência e da receita dos anunciantes), como nesse enunciado de enrijecimento da fiscalização.

Precisamos de bom senso para diferenciar um espaço de manifestação cultural de interesse público, para reconhecer a importância das culturas minoritárias em suas diferenças e singularidades, por fim, para saber que não podemos prosseguir trancafiando o nosso arriscado e imprevisível futuro.

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[Ahmad Jarrah, mestrando em Estudos da Cultura Contemporânea, Cuiabá, MT]