“Não perdi ninguém próximo e mesmo assim fui atirada em uma tristeza concreta, que durou dias. Uma amiga descreveu o que sentia como ‘um cansaço crônico’. Com voz baixa, doída, meu pai se disse ‘devastado’. Longe ou perto, vivemos dias de insônia e de lágrimas. Dias de impotência, fragilidade, incredulidade, silêncio. Dias de chorar pela dor do outro, imaginando-se no lugar do outro, sentindo pelo outro, sentindo com o outro. Com os pais, os irmãos, os amigos, os professores. Uma tristeza funda, que nada tinha de artificial. Aquela tristeza que mostra, cruamente, a desimportância de todas as coisas. Por que, a final, doeu verdadeiramente em tantas pessoas?
“É porque ali, talvez alguns se lembrem, ali não era uma boate. Ali era a distribuidora da Brahma. A distribuidora do Ives Roth, que para mim era ‘o pai do Cabeto’. Na frente dali, não era o Carrefour. Era o colégio Hugo Taylor, a antiga Escola de Artes e Ofícios, de propriedade da cooperativa dos ferroviários”.
Indignada com um artigo de um psicanalista que vinha sendo recomendado via Twitter e apontava a suposta hipocrisia de quem expunha nas redes sociais seu pesar pela tragédia em Santa Maria, a jornalista e professora Marcia Benetti decidiu mostrar por que a dor de toda aquela gente era verdadeira. Escreveu um texto em sua página no Facebook no dia 5 de fevereiro e logo obteve muitos elogios e inúmeros compartilhamentos – eram 158 na tarde de domingo (10/2). Mas, além de atingir seu principal objetivo – o de demonstrar que o tal psicanalista não havia entendido nada e que, sim, “expressar este sentimento nas redes sociais é o movimento óbvio, humano, de compartilhar” –, ela indiretamente apontou um enfoque ausente, ou pelo menos muito raro, no jornalismo de hoje, incapaz de lidar com o sofrimento para além das perguntas óbvias e inúteis, ou da repetitiva exploração das imagens da dor, como tantos criticaram neste Observatório ao longo das últimas semanas.
Natural de Santa Maria, formada em jornalismo pela UFSM, professora na UFRGS há cerca de 15 anos, Marcia discorre sobre a sua memória afetiva e de repente a cidade aparece – um pouco à maneira do antológico Poema Sujo de Ferreira Gullar – “em suas quitandas, praças e ruas”, reconhecível por quem é do lugar, imaginada por quem é de fora. Porque – mais uma vez como diz o poeta…
“O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade./ mas variados são os modos/ como uma coisa/ está em outra coisa/ (…) a cidade está no homem/ quase como a árvore voa/ no pássaro que a deixa/ cada coisa está em outra/ de sua própria maneira/ e de maneira distinta/ de como está em si mesma”
Singularidade plural
Um pouco de boa poesia pode, portanto, ajudar tanto psicanalistas prisioneiros de seus cânones interpretativos quanto jornalistas confinados ao automatismo de suas rotinas profissionais. Além de noticiar o fato, com o vigor exigido pela dimensão da tragédia, além de buscar as razões do ocorrido e exibir as imagens da dor, a reportagem poderia investir no que distingue aquele fato de outros semelhantes pelo mundo afora.
Então apareceria a singularidade daquela cidade que se movimenta em torno da atividade universitária, as relações que se estabelecem e perduram para além da presença física, os diferentes níveis de identificação que essas relações constroem e que permitem traduzir, ou pelo menos esboçar, o sentimento de comunhão e solidariedade de tantas pessoas em torno de tamanha perda.
***
[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]