Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Falácias sobre prevenção de suicídios

Uma curta nota, intitulada “Baixas na PF”, da coluna “Holofote”, assinada pelo jornalista Pedro Dias Leite (Veja, edição 2306, de 30/01/13), causou grande surpresa e indignação entre os policiais federais de todo o país. De acordo com a revista, o aumento do número de suicídios, entre os cerca de 10 mil integrantes da Polícia Federal, chamou a atenção do diretor-geral do órgão, delegado Leandro Daiello Coimbra. A média de um caso por mês, até outubro do ano passado, teria levado o órgão a lançar um programa de apoio psicológico aos policiais. “Os primeiros resultados foram animadores. Agora, o foco recairá sobre os integrantes mais velhos da corporação, que se mostraram resistentes à iniciativa na primeira etapa”, informou a nota.

Reproduzida por Ricardo Setti, em sua coluna na edição online da revista, a nota foi excluída, no dia seguinte, depois que dezenas de leitores que integram os quadros da Polícia Federal enviaram comentários, dizendo que não tinham conhecimento da existência do tal serviço. O jornalista informou que, em respeito aos leitores, retirou a postagem do blog e encaminhou a questão ao autor da nota, para apurar a questão em profundidade.

A falácia do diretor-geral, ou de algum de seus assessores (o colunista não revelou sua fonte), gerou uma reação em cadeia da Federação Nacional de Policiais Federais (Fenapef) e da maioria de seus sindicatos estaduais, que cobraram explicações do diretor-geral e dos superintendentes regionais do órgão sobre o serviço de apoio psicológico, do qual ninguém nunca ouvira falar e não sabe se existe, nem mesmo no papel. Até hoje, não se tem notícia que algum dos dirigentes da PF tenha indicado onde e como recorrer ao atendimento.

Psicólogos de plantão

Ninguém faz a mínima ideia de onde surgiu a informação sobre os primeiros resultados “animadores”. Nem quanto aos policiais mais antigos, que estariam recusando o apoio especializado, outro atentado de informação à lógica e à realidade. Só em eventuais alucinações, os muitos policiais federais que precisam de tratamento, dependentes de medicamentos controlados ou que dormem às custas de tranquilizantes, poderiam recusar acompanhamento psicológico ou psiquiátrico que não existe.

O Sindicato Nacional dos Servidores do Plano Especial de Cargos da Polícia Federal (Sinpecpf), que representa os profissionais de saúde do órgão, em nota, também contestou a veracidade da informação. A entidade informou que a PF conta hoje com apenas 15 psicólogos em seu quadro. Além de poucos, alguns pensam em alternativas com melhores perspectivas de remuneração e valorização profissional. Com uma equipe tão ínfima, é inviável implantar qualquer programa preventivo de apoio psicológico de âmbito nacional para atender, na realidade, em torno de 14mil servidores (11,5 policiais e 2,5 mil administrativos), lotados em mais de 160 unidades da PF, no Brasil e no exterior.

De acordo com o sindicato, hoje a atuação das equipes psicossociais da PF se restringe a ações pontuais, parte delas em caráter emergencial, o que nem de longe pode ser chamado de política ou programa preventivo de saúde. No ano passado, a única medida tomada pela PF, em decorrência da alta no número de suicídios, foi colocar dois psicólogos de plantão à disposição dos servidores na superintendência do órgão no Distrito Federal.

Cinismo ou escárnio

Apesar das muitas reclamações e evidências, ao que parece a direção do órgão não pediu a correção ou se retratou das informações truncadas nem para o público interno, muito menos para a opinião pública. Os gestores da renomada Polícia Federal, sempre solícitos em divulgar as grandes operações policiais, sob os holofotes da mídia, não demonstram muito empenho para tornar claros os problemas e soluções relacionados aos recursos humanos, como se estes não tivessem reflexos no desempenho das atividades do órgão e na qualidade de serviços oferecidos à sociedade.

Vejanão dedicou uma única linha ao assunto na edição seguinte. Na edição de Carnaval (2308, de 13/02/13), a seção de cartas do leitor, finalmente, abriu espaço para publicação de dois parágrafos da nota do sindicato dos servidores da PF que desmentiu a informação.

Não fosse a postura do jornalista Ricardo Setti, poucos saberiam que a informação atribuída ao dirigente máximo da PF não é verdadeira. A maioria dos leitores de Veja que acompanha apenas à versão impressa continua desinformada sobre o tema. Resta torcer para que a nota desperte o interesse para abordagens mais precisas e profundas no semanário ou em outros veículos de comunicação.

Na melhor das hipóteses, alguém antecipou a notícia de ideias ou medidas que ainda não saíram do plano das intenções. Neste caso, Veja tomou uma “barriga” (que na gíria jornalística refere-se à informação falsa divulgada como furo de reportagem). Ou o diretor-geral da PF e seus assistentes desconhecem a realidade do órgão que administram. Na hipótese mais pessimista, talvez se tenha tratado assunto tão sério de forma irresponsável e leviana, num desrespeito aos policiais federais que, de fato, precisaram ou estão necessitando de apoio especializado. Soa como cinismo ou escárnio à memória e aos familiares dos muitos colegas que já se foram, de forma trágica, sem qualquer acompanhamento ou atenção por parte do órgão.

Lacunas ignoradas

Perde o leitor, a sociedade e autoridades, a quem cabe tomar as iniciativas para que metas, ações, programas ou serviços relacionados à saúde mental de profissionais de segurança pública, e não apenas da PF, deixem de ser apenas boas intenções ou pretexto para promoção pessoal de seus gestores. Esta é uma questão da mais alta relevância pública: afinal, são agentes do Estado, armados, que estão nas ruas para prestar segurança à população. Ter certeza que todos os policiais estão aptos e em plenas condições mentais para agir na linha de frente contra a criminalidade, cada vez mais violenta, sem que representem ameaça à própria incolumidade e a de cidadãos, mais que desejável, também é (ou deveria ser) prioridade de políticas de segurança pública.

Para além do preocupante aumento de suicídios ou tentativas (cerca de 20 casos de policiais federais, ativos e aposentados, nos últimos dois anos), faltam reportagens que revelem as razões de altos percentuais de policiais afastados por problemas de estresse, depressão e vários outros problemas psicológicos ou psiquiátricos. Há unidades da PF em que as licenças para tratamento de saúde chegam a 30% do efetivo.

A inexistência de acompanhamento dos servidores que passam por traumas e as implicações daqueles que se envolvem em ocorrências violentas, que vitimam os próprios policiais, cidadãos e até os criminosos são lacunas ignoradas pela instituição. Algumas polícias militares mantêm programas que nunca foram sequer comentados na poderosa PF.

Assunto reservado

Além da natureza estressante da própria atividade de risco, como em outras corporações, na PF certos fatores agravam a situação: falta de reconhecimento, sobrecarga de trabalho, viagens, jornadas extenuantes, relações hierárquicas autoritárias, assédio moral e disciplinar, perseguições e discriminações, chefias despreparadas. Além de degradar o ambiente de trabalho, desmotivam e culminam no afastamento de policiais.

Em termos de acompanhamento periódico das condições psicológicas de profissionais que usam armas de fogo, o ramo de segurança privada, que emprega vigilantes em bancos, transporte de valores, escolta armada e segurança pessoal, tem controle mais efetivo que a própria PF. Por lei, vigilantes são obrigados a passar por avaliação psicotécnica e exames médicos, anualmente. Por ironia, a atividade é fiscalizada pela própria PF, confirmando o velho ditado de que “em casa de ferreiro, o espeto é de pau”.

O assunto suicídio ainda é tratado com reserva nas redações, o que talvez explique a falta de espaço ou interesse. Contudo, sobram pautas e fontes sobre suas causas e meios de preveni-lo.

Mas a dor e a morte de policiais, parafraseando Chico Buarque, não costumam sair nos jornais brasileiros.

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[Josias Fernandes Alves é agente de Polícia Federal, formado em Jornalismo e Direito e diretor de Comunicação da Federação Nacional de Policiais Federais]