Aparentemente, a renúncia de Bento XVI não causou grande comoção no Brasil. Nossa gente parecia mais interessada nas folias de Momo ou nos outros entretenimentos que a trégua carnavalesca oferece. Aqui e ali, nas esquinas cibernéticas, até mesmo os jornalões preferiram as sinuosas rainhas de bateria ao velho pontífice.
Convém salientar que nem sempre foi esse o rito da cobertura. Em outros tempos, o assunto teria merecido maior destaque. Afinal, nenhum vivo havia testemunhado, até então, uma renúncia papal.
Esse comportamento pode ser explicado também pela quase extinção da cobertura regular de assuntos religiosos nas grandes redações. Durante décadas, os principais veículos contavam com setoristas para a área, profissionais que se mantinham atentos, de modo especial, às manifestações da Igreja Católica Apostólica Romana.
Hoje, assuntos de fé são tratados em páginas de polícia, comportamento ou de política, por jornalistas nem sempre capacitados para reconhecer as peculiaridades do tema.
Até o princípio da década de 1990, os principais veículos de comunicação brasileiros cuidavam de noticiar em detalhes, por exemplo, as deliberações da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Essa atenção especial devia-se a dois fatores: o real interesse do público católico e a importância da voz da Igreja no período da ditadura militar, quando outras entidades se viram silenciadas pelo regime.
Como resultado do processo de redemocratização, os bispos deixaram de figurar como porta-vozes confiáveis dos censurados, dos desaparecidos e dos mortos na luta política. Ao mesmo tempo, sem alarde, a cúpula romana tratou de afastar seus líderes nacionais e regionais desse tipo de militância.
Essa Igreja que deixou as ruas e retornou às paróquias foi instruída por homens austeros, recatados e silenciosos como o cardeal Ratzinger, eleito papa após a morte de João Paulo II.
Parte do “branco” da imprensa após a renúncia do pontífice alemão tem relação direta com a extensão e altura dos muros erguidos recentemente pelo Vaticano no campo das interações com a mídia.
Neste momento marcado pela incerteza e pelo recurso ao lugar-comum nas interpretações jornalísticas, convém uma curta viagem histórica pela história da Igreja nos últimos cinquenta anos, período no qual o sacerdote Ratzinger apresentou-se como protagonista.
Guinada à direita
No início da década de 1960, a Igreja foi subitamente oxigenada por meio da realização do Concílio Vaticano II (1962-1965), uma conferência consultiva e deliberativa que mudou a face da instituição, abrindo-a mais ao mundo e capacitando-a a exercer, na prática, a missão libertadora inspirada pelo carpinteiro de Nazaré.
A aventura conciliar foi obra de Ângelo Roncalli, papa João XXIII, que liderou a Igreja por cinco anos, até sua morte, em 1963. O sacerdote italiano, ainda que discreto, era um humanista, simpatizante das causas sociais.
Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, enquanto a Igreja se calava diante das brutalidades nazistas, Roncalli salvava muitos judeus, concedendo-lhes secretamente passes de sua delegação apostólica e certificados de batismo.
O concílio mudou a liturgia católica, tornando-a mais acessível ao homem comum. Além disso, aprofundou a colegialidade episcopal, valorizou os leigos, desenvolveu o ecumenismo e redefiniu a ação pastoral, colocando-a também a serviço da justiça social.
Por isso, até hoje, João XXIII é lembrado mundo afora como o “Papa Bom”, enquanto entidades conservadoras católicas o consideram um antipapa, um comunista infiltrado na casa de Pedro para incorporá-la ao movimento esquerdista-libertário que varreria o mundo naquela década.
Durante o concílio, Ratzinger serviu como peritus, uma espécie de consultor teológico. Nessa época, era visto como um reformador, alinhando-se com pensadores do naipe de Hans Küng e Edward Schillebeeckx.
Ratzinger logo se tornou muito próximo do jesuíta alemão Karl Rahner, um dos expoentes da chamada Nouvelle Théologie, que teve vários de seus postulados condenados na encíclica Humani Generis, do papa Pio XII. Essa visão não era compartilhada por João XXIII, que o escalou como consultor no concílio. Rahner elaborou sugestões, defendeu a renovação da instituição e acabou por influenciar decisivamente suas plateias.
Ratzinger seguiu muitas dessas ideias e as reproduziu quando professor de Teologia na Universidade de Tübingen. Num de seus livros, escreveu que o papa deveria ouvir diferentes vozes dentro da Igreja antes de tomar importantes decisões.
Por volta de 1968, no entanto, com as insurgências estudantis na Europa, Ratzinger se mostrou preocupado. Via nelas uma forte influência marxista e uma afronta aos ensinamentos tradicionais católicos, especialmente no campo das condutas pessoais. Passou a retardar o passo.
A rigor, Ratzinger nunca admitiu essa guinada ao conservadorismo. Nas raras vezes em que concede uma entrevista, costuma declarar que não alterou substancialmente sua visão sobre o papel da Igreja no mundo. Afirma, por exemplo, que segue como defensor do ecumenismo e da liberdade religiosa.
Volta às tradições
Depois da morte de João XXIII, os cardeais elevaram ao comando da igreja o discreto Giovanni Montini, convertido em Paulo VI, homem sem fervor revolucionário, mas que trabalhou metodicamente para implantar as mudanças definidas pelo concílio, procurando harmonizar as diversas correntes ativas na instituição.
Ao fim de seu pontificado, em 1978, porém, muitas medidas transformadoras ainda careciam de normatização. Assumiu o trono outro italiano, Albino Luciani, convertido em João Paulo I, tido como um homem também sensível à necessidade de humanização e atualização da Igreja.
O “Papa do Sorriso” teve um pontificado curtíssimo e as causas de sua morte constituem, ainda hoje, motivo de polêmica. São vários os autores que sugerem um assassinato, historicamente um recurso comum quando se trata da luta por poder no Vaticano.
Sucedeu-o Karol Wojtyla, convertido em João Paulo II. O papa “pop”, que iniciou seu pontificado aos 58 anos, mostrou-se um bom gestor de marketing e um excelente comunicador. Seu pensamento político se formara na Polônia sombreada pela cortina de ferro, onde nascera, em 1920. Mostrou-se, desde cedo, um opositor do comunismo de estilo soviético, essencialmente ateu e anticlerical.
Assim, desentendeu-se desde cedo com as lutas sociais da esquerda e dos movimentos liberalizantes dentro da Igreja. Via, por exemplo, coincidências entre os postulados da Teologia da Libertação e a doutrina da URSS stalinista.
João Paulo II, tido como um carola jovial, tornou-se aos poucos um juiz severo das modernidades comportamentais. No entanto, abriu a Igreja ao universo da comunicação de massa. Convenceu-se de que precisava reevangelizar o mundo e, para esse fim, utilizou como pôde seus talentos de ator, desenvolvidos na juventude. Tornou-se o meio e, assim, definiu a mensagem.
Enquanto peregrinava pelo planeta, permitia que seus assessores reeducassem a cúpula romana, reaproximando-a da ortodoxia doutrinária. Assim, delicadamente bloqueou vários avanços propostos a partir do Concílio Vaticano II, como a valorização dos leigos, a inclusão de mulheres na hierarquia da instituição e uma compreensão do novo contexto da sexualidade no mundo.
Nessa época, a liderança conservadora encontrou resistência, especialmente na América Latina. Em São Paulo, por exemplo, entidades ligadas à arquidiocese, então liderada por Dom Paulo Evaristo Arns, distribuíam preservativos em nome da preservação da vida. Nos bairros da grande urbe, especialmente na periferia, os padres sabiam que os católicos já não faziam sexo apenas com o objetivo de procriar.
Em suas viagens pelo continente, João Paulo II mostrou-se tocado pela pobreza e não deixou de pedir democracia em países como o Paraguai, ainda mergulhados no autoritarismo. Mesmo assim, dedicou-se a sua missão de desconstruir as redes de ação pastoral popular, nomeando bispos alinhados com o pensamento conservador. Aos poucos, a combativa CNBB tornou-se suave e alinhada com o pensamento da liderança romana. As estrelas deixaram de ser os padres que usavam boinas estreladas, aos poucos substituídos pelos jovens sacerdotes cantores.
Com a morte de prelados influentes, como Dom Luciano Mendes de Almeida (antes enviado ao interior de Minas Gerais) e Dom Aloísio Lorscheider, a obra transformadora se pulverizou.
Os bispos neoconservadores trataram de esvaziar também as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), importantíssimas no processo de redemocratização do país e na organização dos movimentos populares de reivindicação.
A Teologia da Libertação foi duramente golpeada. Figuras de proa do movimento, como Leonardo Boff, foram vítimas de uma Inquisição sem fogueira. Bispos como Dom Pedro Casaldáliga, ligado às demandas de índios e sem-terra, também sofreram fortes pressões do Vaticano.
O líder dessa blitz conservadora, desde 1981, foi o chefe da Congregação para a Doutrina da Fé (versão moderna da temível Congregação do Santo Ofício), cardeal Joseph Ratzinger, visto por muitos católicos progressistas como um Torquemada culto, racionalista, metódico e implacável.
Após a morte de João Paulo II, em 2005, o próprio Ratzinger assumiu o poder, determinado a reorganizar a Igreja por dentro. Desde o primeiro momento, mostrou que, ao contrário do antecessor, não se sentia à vontade sob os holofotes da mídia.
Em seu discreto pontificado, liderou um retorno às tradições na Igreja. Manteve, por exemplo, restrições ao uso de preservativos, embora se comente que o assunto o atormentava nos últimos anos. Considerou as afeições homossexuais como desvios, sugeriu que islamismo tenha surgido como uma religião violenta, ofereceu obstáculos ao processo de valorização dos leigos e rejeitou as propostas de flexibilização do celibato.
Suspiro derradeiro
Como é grande e complexa, entretanto, a Igreja se subverte aqui e ali, longe dos olhos de Roma. Em silêncio, um ou outro sacerdote mantém a chamada “opção preferencial pelo pobres”. Ao mesmo tempo, na frente conservadora, entidades como o Opus Dei procuram ampliar sua influência na instituição.
De fato, Bento XVI sente o peso da idade. No entanto, não se descarta a hipótese de que sofra pressões na sede do poder. Há quem aposte que esteja sendo vítima de chantagem, depois que inúmeros documentos do pontificado foram desviados por uma célula de espionagem que tinha, como face visível, um misterioso mordomo.
Sabe-se, por exemplo, que as instituições financeiras católicas serviram muitas vezes a causas nada pastorais e cristãs. Liderado de 1971 a 1989 pelo finado arcebispo norte-americano Paul Marcinkus, o Banco do Vaticano tomou parte numa rede de negócios ilegais que tinha como participantes a loja maçônica P2 e grupos de extrema-direita responsáveis pelo estabelecimento da “estratégia da tensão” na Itália. Nessa época, o projeto era semear o terror no país por meio de atentados (que efetivamente mataram muitos inocentes) e, assim, validar um regime autoritário, sustentado por uma doutrina de segurança nacional.
Hoje, nos bastidores da Santa Sé, os boatos se multiplicam. Algum abuso do gênero pode ter se repetido, com ou sem o consentimento do pontífice. Jornalistas que cobrem os assuntos da Cúria suspeitam de que muitas das descobertas do mordomo ainda não tenham sido divulgadas.
Ao mesmo tempo, o Vaticano tem sido palco de batalhas obscuras pelo poder. Não se trata mais de uma contenda entre progressistas e conservadores, posto que os primeiros foram praticamente aniquilados nas instâncias de poder. A disputa se dá entre novos e velhos, entre facções, entre figuras que secretamente almejam conquistar o comando de um rebanho que conta com mais de um bilhão de almas.
Para determinados grupos, Ratzinger representava a ameaça de uma limpeza moral em determinadas instâncias da Igreja. Sob seu comando, clérigos maculados pela prática da pedofilia poderiam sofrer graves punições, mesmo considerada a morosidade das investigações internas. Ao mesmo tempo, corruptos supostamente ativos nas instituições bancárias poderiam ser entregues às autoridades leigas.
Os próximos meses serão importantes na definição dos novos caminhos da Igreja. E é certo que os jornalistas atentos terão muito o que narrar a seus leitores.
Cabe lembrar que os antecessores de Bento XVI, na frieza de seus sepulcros, encontraram-se limitados para influenciar o conclave. O sacerdote alemão, no entanto, está vivo para falar ao ouvido dos cardeais. Mesmo fraco e entristecido, segue um bom argumentador. Pode, num último suspiro, fazer seu sucessor, provavelmente jovem, provavelmente conservador, capaz de unificar a cúpula da Igreja romana e fazer deslanchar o processo da contrarrevolução.
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[Walter Falceta Jr. é jornalista. Trabalhou por vários anos na cobertura de assuntos religiosos, atuando em veículos como Veja e O Estado de S. Paulo. A serviço do jornal, entrevistou o cardeal Ratzinger, durante um curso para bispos, realizado em 1990, no Rio de Janeiro]