Há 37 mil anos, aproximadamente, ao lado das imagens de grandes animais de caça e de valorosos caçadores, sob a fraca iluminação de labaredas, nasceu o primogênito de todos os avatares. Supostamente na caverna denominada El Castillo, localizada na atual Espanha, um pródigo antepassado nosso grava esta inusitada representação, não outra do mundo, e sim a primeira de si: na forma de sua palma premida ao encontro da pedra.
A despeito das motivações ritualísticas deste ato primal, resta-nos o fato de estar diante, talvez, de um dos primeiros momentos onde o indivíduo projeta-se, simbolicamente e intencionalmente, no mundo sensível.
Milhares de anos depois, similar mão humana, uma de nossas principais ferramentas de transformação da realidade, gira 180 graus a máquina digital e, pressionando o botão disparador, captura outra imagem: um novo avatar, destinado à projeção simbólica do indivíduo no mundo virtual. As semelhanças e diferenças entre esses dois gestos, separados por tempo, cultura e tecnologia, motivaram esta reflexão.
Convido-os então ao espelho, pois estas linhas versam, enfim, sobre o ato de refletir(se).
Novas tecnologias
Atualmente, prevalece na mídia um discurso de exaltação das novas tecnologias, principalmente aquelas ligadas às atividades de telecomunicações. Expressões frequentes como “o futuro já chegou”, “maravilhas tecnológicas” e “conexão total com o mundo” “fetichizam” novos produtos, transformando-os em objetos do desejo, de consumo obrigatório.
Interessa às atividades de comunicação, na qualidade de elo na cadeia do capital, a proliferação desenfreada de todo e qualquer equipamento que facilite o acesso a seus conteúdos. Por esse motivo carregamos hoje nos bolsos, bolsas e mochilas o “futuro” tão festejado: Google, Facebook, Twitter, YouTube e similares.
Todavia, não podemos reduzir-nos a meras vítimas de um aparelho midiático perverso, ou de um aparelho capitalista controlador. Há perversão, certamente, e controle, sem sombra de dúvida. Entretanto, desenvolvemos uma relação simbiótica de dependência mútua com os veículos de comunicação, que se estreita a cada imagem compartilhada e a cada dossiê pessoal transformado em objeto público de entretenimento.
Não mais como aqueles acorrentados na caverna de Platão, somos livres para nos aprisionar, por espontânea vontade, a esta relação sadomasoquista com as estruturas midiáticas, na qual tanto controlamos quanto somos controlados.
Antigos modelos
Essa distribuição pulverizada e multidirecional do poder foi percebida e discutida por diversos autores a partir da metade do século passado. Dentre eles Michel Foucault, em sua obra Microfísica do Poder, descreve o processo de desconstrução dos antigos modelos baseados na visão do poder e do controle como atividades exclusivas dos aparelhos de Estado.
Do mesmo modo devemos perceber a sociedade do espetáculo: não somente um grupamento amorfo – a massa consumidora de megaespetáculos extremos e hipertrofiados –, mas um imenso conjunto de indivíduos, dos quais os espetáculos partem e aos quais os espetáculos retornam.
Somos coprodutores da indústria cultural, e consumidores autofágicos de nossa produção. Adicionalmente, sempre que compartilhamos nossos microespetáculos pessoais tornamo-nos também seus veículos, e uma nova classe de produtos.
O produto ideal
No espaço virtual, o ser humano é o principal produto: como bem sabemos, sites e empresas são avaliados por sua quantidade de usuários e acessos, que representam seu potencial de movimentação financeira e de negócios. Nas redes sociais, somos o produto ideal: aquele que vende a si mesmo. Cúmplices, figurantes e protagonistas de um complexo evento multimidiático, multicultural e globalizado, atuamos 24 horas por dia, 7 dias por semana e 365 dias por ano.
Não somos inocentes, e muito menos o são as estruturas do capital que mantêm a máquina virtual operando com eficácia e precisão. Tão-somente eles oferecem as ferramentas com as quais nos seduzimos: imagens, sons, movimento, design impecável e muitos botões, estes cumprindo o papel de instrumentos de reafirmação do pacto mútuo de cumplicidade.
Então, com o simples clicar de um botão, proporcionamos a homogeneização das relações interpessoais: familiares próximos ou distantes, conhecidos ou desconhecidos, colegas de trabalho ou de estudos, somos agora todos amigos. Ao clique de outro botão, tornamo-nos ainda melhores que amigos, tornamo-nos seguidores.
Jovens messias do novo milênio, possuímos séquitos fiéis e incansáveis. Somos também seguidores de outrem, compartilhamo-nos, curtimo-nos e comentamo-nos continuamente, em um frenesi de cliques contabilizáveis, diariamente, em bilhões. Movemos assim, com a força de um único dedo, o monumental aparato ontológico que garante nossa existência virtual.
Mobilizações relevantes
Não pretendo aqui execrar as novas tecnologias, ou as relações virtuais. Não tento condenar as redes sociais por si mesmas, ou banalizar os relacionamentos que estas possibilitam. Acredito nesta estrutura tecnológica propiciadora e facilitadora da comunicação e interação entre as pessoas. Creio ser, enfim, um processo irreversível e bom. Muitas mobilizações relevantes lá ocorrem: poderes podem ser questionados e certas práticas, denunciadas. A humanidade que se exibe também se policia – tanto para o bem quanto para o mal.
Entretanto, a consciência de nosso papel na dinâmica dos espetáculos, e de nossa tríplice condição de consumidor, produto e veículo, reforça a necessidade de refletirmos, eventualmente, sobre tais existências virtuais. Revolvendo o fundo do lago, faremos com que o lodo venha à superfície, dificultando o mergulho narcísico e impulsivo na imagem que nos seduz.
Lembremos nesses momentos daquele primeiro de nós, que calcou a mão sobre a pedra, em um ato de profunda significação, e marcou-se no mundo. Pois retiradas a pedra, a mão e a tinta, restam-nos apenas nossos duplos virtuais: compostos por infinitos zeros e indistintos uns.
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[André Silveira Sampaio é professor e escritor]