Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bento, o Honesto

A recente abdicação do Papa ao privilégio da infalibilidade teve o poder de fazer desabar sobre ele uma chuva de mágoas vocalizadas pela imprensa internacional. Se, no aguaceiro de lamentos faltaram lágrimas de saudade, sobraram críticas quanto às gafes que teriam acompanhado a sua passagem pela cadeira de Pedro. A cada novo Papa, laicos, cristãos e membros de outras tradições religiosas, renovam as suas esperanças na modernização da Igreja sem considerar que é da eternidade de um Deus, a quem ela representa, que diz respeito a sua atuação neste nosso mundo sujeito a súbitos cometas inesperados.

Como poderia Bento XVI sustentar a verdade eterna e, ao mesmo tempo, realizar adaptações ao efêmero mundo do agora? Afinal moderno e contemporâneo são palavras que apontam para uma adequação permanente aos modos de pensar o bem, o mal, o correto, o errado e quais valores devem ser mantidos ou não.

A relação de Bento com as outras religiões monoteístas frequentou intensamente as listas de decepções elaboradas por jornalistas deste nosso mundo de Deuses únicos. Ao chamarem suas declarações de gafes, eles esquecem que todas elas, sem exceção, se referem à Teoideologia do pensamento cristão. Ideologia teológica que construiu uma visão de mundo que ultrapassa os limites da própria religião e se confunde com a construção do imaginário ocidental.

Os comentários do Papa Bento sobre os povos pré-colombianos, os muçulmanos, os judeus, aparecem em inúmeros artigos que, com a mesma unanimidade com que o criticam, deixam de perceber que Bento, enquanto voz da Igreja, carregava a cruz de uma teologia que buscou se impor como verdade universal.

"O anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura estrangeira", isto dito pelo Papa em sua visita ao Brasil, foi uma gafe, ou a expressão do cristianismo missionário, cônscio da tarefa de conduzir as almas do planeta à vida eterna? A intervenção de Bento XVI em Ratisbo, em setembro de 2006, chocou o movimento do Islã Mundial ao citar o imperador bizantino Manuel II que, falando da conversão pela violência praticada nas conquistas muçulmanas, disse que a fé de Maomé "era má e desumana". Bento XVI falou o que não devia porque expressou um ponto de vista da Igreja frente àquela religião, cometendo assim, mais uma gafe?

Decisão criticada

Pensando na unidade da Igreja, Bento XVI suspendeu a excomunhão de quatro bispos seguidores de Lefebvre porque desejava reatar o diálogo com os ultratradicionalistas. Richard Williamson, um dos bispos reabilitados é conhecido pelo seu antissemitismo. Pouco tempo antes do perdão concedido, Williamson negou a existência de câmaras de gás nos campos de concentração nazistas e reduziu o número de judeus mortos a 300 mil. Outra gafe do Santo Padre, ou mais uma demonstração da infalível lealdade de Bento XVI à unidade e à eternidade da Igreja que precisa preservar?

No seu livro “Jesus de Nazaré”, o Papa escreveu que "a aristocracia do Templo" em Jerusalém e "as massas", e não "o povo judeu em seu conjunto", era responsável pela crucificação de Jesus, repudiando desta maneira o conceito de culpa coletiva dos judeus, numa demonstração do seu desejo de convívio inter-religioso. Mas esta já não era a linha do Concílio do Vaticano II em 1965? Ao que parece modificar ritos e atitudes não impede que o pensamento originário retorne sob a forma de “gafes”. Apesar de perdoar em causa própria ao refletir sobre este equívoco semântico da Igreja, Bento XVI provocou reações de alegria entre judeus ávidos por uma nova Igreja a cada substituto de Pedro. Elan Steinberg, vice-presidente da “Reunião Americana de Sobreviventes do Holocausto e de Seus Descendentes”, ao se referir a esta reflexão do Santo Padre comentou: “Esse é um avanço importante. É o repúdio pessoal ao fundamento teológico de séculos de antissemitismo”. A pergunta que se coloca, é se o que lhe parece uma modificação teológica, abole, também, a responsabilidade individual de cada judeu que segue sem aceitar Jesus. Ao que parece confundir reflexões pontuais de Bento XVI com fundamentos teológicos da igreja pode se revelar uma conclusão apressada.

Em dezembro de 2012, o secretário-geral do Conselho Central dos Judeus da Alemanha declarou estar “triste e furioso” pelo fato de o Papa Bento XVI ter proclamado “venerável” o seu antecessor Pio XII, criticado por seu silêncio durante o Holocausto. No início de 2013 foram reabilitadas as rezas em Latim que falam dos judeus como aqueles que devem ser salvos e pedem aos cristãos que rezem pela sua conversão.Em Londres o “Comitê Judaico Internacional para Consultas Inter-religiosas” criticou a decisão. O rabino David Rosen, presidente desta entidade, declarou que “qualquer liturgia que apresenta os judeus como vítimas de sua religião, não demonstra uma atitude muito saudável ao Judaísmo e ao povo judeu” Parte inferior do formulário

Nova interpretação

No blog da Capela Santa Maria das Vitórias, o pensamento brasileiro que se conserva atento às raízes católicas, assim se expressou sobre este tema: De maneira que, quando desponta o problema doutrinário – por que hoje temos um papa teólogo que não descuida do dogma – essas pessoas sentem-se enganadas achando que a Igreja tinha renunciado à sua missão de proclamar Cristo como único Salvador e a ela própria, Igreja Católica Apostólica Romana, como a única verdadeira Igreja de Cristo”. As pessoas que se sentem enganadas pelas declarações amistosas do Concilio Vaticano II, a que se refere o artigo, são comunidades judaicas como as que se queixaram das declarações de Bento em sua visita a Auschwitz. Segundo o jornal O Globo de 27/ 02/2013, eles consideraram a suafala tímida, porque sentiram falta de uma critica explícita ao antissemitismo criado pelo cristianismo, que teve, como consequência histórica, a “solução final” do “problema judeu” posta em prática na Alemanha nazista.

Exigir esta atitude de Bento XVI é como negar os fundamentos teológicos do cristianismo. Desde o seu início, a Igreja considerou como verdadeiro escândalo para a sua doutrina salvadora a sobrevivência da nação que criou o conceito de Messias e negou a Jesus o privilégio de assumir este posto que, pelo que consta, ele não reivindicou. Considerando o cristianismo como herdeiro direto de Abraão, a Igreja anunciou que os verdadeiros judeus portadores do pacto seriam os cristãos que aceitavam a revelação salvadora do Deus feito homem. Tomai Israel segundo a carne, como queria Saulo de Tarso, significou que a nova Israel seria espiritual e cristã. Como consequência, a salvação messiânica que pertencia ao mundo terreno dos judeus deveria ser elevada à categoria espiritual dos cristãos. Dali em diante, todos seriam salvos em suas almas e não mais na realidade concreta do mundo político das fomes e das injustiças.

Numa complementação desta releitura teológica, a profecia que diz respeito ao nascimento de Esaú e Jacó (Gen. XXV), que previa que o irmão mais velho serviria ao menor, é resignificada pela nova interpretação. Jacó, considerado modelo da casa de Israel, se transforma em antecipação da cristandade a quem o irmão mais velho, Esaú, agora protótipo dos judeus, deverá servir. Em Santo Agostinho, criador da “Doutrina do Povo Testemunha” e do conceito de “Bibliotecário Escravo”, podemos encontrar a expressão destas posições entre os patriarcas da Igreja.

“Santo Agostinho diz em seu comentário ao salmo 148: “Ninguém diga: “Não sou filho de Israel”“ Pois não penseis que os judeus são filhos de Israel e nós não somos; atrevo-me a dizer-vos, meus irmãos, que eles não são e nós somos. Ouvi por que: porque é maior o nascido segundo o espírito que o nascido segundo a carne. De quem procede Israel? De Abraão. Israel nasceu de Isaac, e Isaac de Abraão. (…) Quem degenera da fé de Abraão perde a linhagem de Abraão. Os judeus degeneraram, perderam sua estirpe. Nós imitamos Abraão, encontramos sua linhagem. (…) Ademais, Cristo é a linhagem de Abraão, e nós estamos em Cristo, pois do povo de Israel procede Maria, da qual nasceu Cristo, e nós nos achamos em Cristo; logo somos filhos de Israel.” Além do testemunho da tradição, temos a Sagrada Escritura que nos mostra Nosso Senhor, depois de negar que os judeus têm por pai Abraão, dizendo: “Vós tendes como pai o demônio e quereis fazer os desejos de vosso pai. Ele era homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele.”(Jó. 8,44)”( http://santamariadasvitorias.org 7/05/2009)

Acasos da escrita

Num mundo dominado por Roma, contra a qual os judeus se revoltaram e viram a sua terra destruída e salgada, a aliança entre a Igreja e a maior potência da época repercutiu nos textos da cristandade. Desterrados da Judéia, eles viram como os acontecimentos que faziam parte de sua historia real eram transformados em historia santa do cristianismo. Quanto à Bíblia, sua referência identitária, onde narrativas santas e laicas lhes davam um sentido de historia e continuidade, esta foi igualmente desapropriada para ser entendida como uma preparação do advento de Jesus. Se considerarmos que na leitura judaica dos acontecimentos, Esaú e seus descendentes, desde Amalek aos romanos, tinham se transformado em conceitos que designavam opostos e inimigos dos valores de Israel, é fácil entender o impacto que esta visão teve sobre a formação da mentalidade de judeus e cristãos nos primeiros séculos da era comum.

Diante destas narrativas fundadoras das origens cristãs, como desejar que, em sua visita a Aushwitz, Bento assumisse como verdade o argumentoque vê na teologia do cristianismo as origens do totalitarismo antissemita que culminou na Shoah? Não seria o mesmo que pedir-lhe para renunciar às suas crenças, já que outros as veem como a origem deste mal? Quanto aos que consideram como deslize, ou gafe, o uso de expressões fieis ao imaginário cristão, não seriam eles pessoas que aspiram por renovações sem que se exponham os pensamentos formadores da mentalidade cristã? Neste caso, as gafes não seriam uma maneira de expor uma verdade ocultada, sob a luz de uma palavra clara? Voltemos ao texto de Bento.

“Mas o homem tem fome de algo mais, precisa de mais. O alimento que alimenta o homem como homem deve ser maior, deve situar-se em outro plano. É a Tora este outro alimento? De algum modo, o homem já pode nela e por ela fazer da vontade de Deus o seu alimento (cf. Jó. 4, 34). Sim, a Tora é “alimento” que vem de Deus; mas ela só nos mostra, por assim dizer, as costas de Deus, ela é a “sombra”. “O pão de Deus é aquele que desceu do céu e que dá a vida ao mundo” (Jó. 6, 33). (….) A lei tornou-se pessoa. No encontro com Jesus alimentamo-nos, por assim dizer, do próprio Deus vivo, comemos realmente o “pão do céu” (cf. Bento XVI, Jesus de Nazaré, Planeta, São Paulo, 2007, p. 101, 232).

Ao que parece temos duas interpretações opostas de um mesmo livro do Papa. Alguns leitores judeus querem encontrar em suas linhas uma quebra nos fundamentos da teologia cristã, enquanto os cristãos percebem a reafirmação da sua teologia nas palavras de um conhecedor dos textos sagrados. É preciso considerar que no processo de construção identitária do cristianismo, a sua teologia vinculou-se ao judeu como a um outro imprescindível à afirmação da própria verdade. Por ser o teólogo que é, ao tomar a Bíblia como referência, Bento XVI não se limita a ler o texto, transforma-o em conceitos que lhe servem para construir o seu próprio pensamento que, pelo seu rigor, não parece aberto aos acasos da escrita. Podemos, portanto, considerar que não foi casual a utilização que o teólogo e sucessor de Pedro faz da imagem “costas de Deus” no texto que está diante de nós.

Relação ética

O Santo Padre nos esclarece que, mesmo sendo a Tora (a Bíblia judaica) “alimento que vem de Deus”, ela só nos mostra “por assim dizer, as costas de Deus” a sua“ sombra". Costas de Deus e sua sombra são imagens que, juntas, solicitam uma leitura mais apurada, talvez exegética. Seguindo o teólogo, tanto as revelações do Deserto do Sinai quanto o Maná que alimentava os judeus, são formas limitadas, sombras da verdade, que o seu evidente platonismo resgata através de Jesus, libertando o judaísmo da sua escuridão:“(no) encontro com Jesus alimentamo-nos, por assim dizer, do próprio Deus vivo, comemos realmente o “pão do céu”

Não é mais o Maná e a Tora que nos chegam do céu e sim o pão como corpo de Jesus que substitui a ambos através de uma carnalidade que abandona o verbo para descer ao mundo. “A lei tornou-se pessoa” e “ desceu do céu” para alimentar com o verdadeiro “pão do céu”. Ao subtrair dos judeus a sua devoção a um Deus cuja única revelação é a letra, e compará-la às costas e as sombras, é nítida a referência do pensamento do Papa à passagem do Êxodo 33:12-22. A sua fidelidade aos preceitos canônicos leva-o a considerar, como sombra da verdade, um principio organizador da identidade dos judeus comprometidos com o pacto do Sinai. Honesto com as palavras, ele não poderia fazer de outra maneira a leitura de uma passagem que os Rabis judeus leram por ótica bem diferente. A ótica é uma ética, nos ensina Emanuel Lévinas.

Conversando com Deus depois do episódio do Bezerro de Ouro, (Ex.XXXII) Moisés Lhe pede que o deixe conhecer o Seu rosto, o que lhe é negado, apesar do texto bíblico falar que entre eles haveria uma relação “face a face como um homem fala com o outro”. Ou seja, direta, atravessada por questionamentos por parte de Moisés e queixas por parte de um Altíssimo que nunca consegue submeter a sua vontade, àquele povo de “pescoço duro”, como diz o texto. No entanto, quando Moisés insiste, Deus consente em mostrar-lhe a sua “Glória” depois de fazê-lo ouvir, novamente, que o homem não pode ver a face de Deus e continuar vivendo. Ou seja, trata-se, no caso, de não poder vislumbrar uma forma concreta, carnal, que nada tem a ver com o “face a face” da relação interpessoal.

Para realizar a sua promessa, Ele resolve colocar Moisés numa fenda protegida na montanha, de onde “me verás de costas”(Vers. 21). Sempre avessos ao antropomorfismo, os Rabis do Talmud recriaram a narrativa bíblica, dando-lhe um sentido que o filósofo Emanuel Lévinas aborda em suas reflexões sobre a revelação no judaísmo. Segundo ele, aqueles antigos mestres de um pensamento estranho ao filosofar ocidental, interpretaram que as“costas” que Moisés percebeu nesta epifania ao modo judaico, sublinham o fato de que “ a Revelação é palavra e não imagem oferecida aos olhos”

O que viram os Rabis, através do olhar de Moises, foi “o nó formado pelas correias dos filactérios sobre a nuca ( costas que não são “sombra”) divina. A revelação gira em torno da conduta ritual cotidiana (os judeus colocam diariamente filactérios na oração matutina). Este ritualismo suspende o imediato das relações com o dado na Natureza e condiciona, contra a espontaneidade cega dos desejos, a relação ética com o outro homem. Isto confirmaria a concepção segundo a qual Deus é recebido no face a face ético com o outro homem e na obrigação com o próximo”( Difícil Libertad.Lilmod,2008,B.A.)

Lutas pelo poder

Como podemos ver, a liberdade do pensamento de Bento XVI vem marcada por uma compreensão que o limita à necessidade cristã de comprovar a degeneração da Torá a ser substituída pela palavra-corpo (não mais espiritual judaica) do Salvador. A sua compreensão das “costas de Deus” demonstra, mais uma vez, a fidelidade que tem a uma teologia que não pode ser superada sem desmontar o edifício construído sobre a pedra angular chamada Pedro. Diante destas intervenções de Bento, e de outras que não incluímos, não podemos desconsiderar as suas tentativas pessoais que esbarraram na visão oficial à qual sempre foi fiel. Como um cristão sem concessões a uma modernidade com a qual tentou dialogar sem renunciar as suas verdades, ele nunca poderia ter ido além de algumas posições que, por serem pessoais, foram consideradas fracas frente à onipresença da teologia.

Como não adianta cair em mais uma lamentação, o melhor seria pensar em algo que poderíamos chamar de uma “Teologia da Diferença”, em que a afirmação de uma visão de Deus não passaria mais pela abolição do outro. O reconhecimento cristão de uma identidade judaica separada e sem pendências mútuas, deixando de lado a visão de que os judeus são a lei superada e os cristãos a encarnação do amor, nos traria de volta a um principio talmúdico que defende a ideia de que Deus falou o mesmo, a cada povo, em sua língua própria. Reconhecer este universalismo implicaria, é claro, no fim dos impulsos catequistas, em retirar Deus do centro da questão e conduzir a ética do face a face ao centro das preocupações dos crentes. Ou seja, fazer a religião voltar-se ao seu legado humanista. Tarefa que parece cada vez mais distante, num mundo em que os fundamentalismos de todo tipo, voltam a demarcar identidades em suas lutas de poder por terras, mentes e corpos capazes de qualquer sacrifício para comprovar que, afinal de contas, o seu próprio monoteísmo é mais verdadeiro que o do outro.

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[Paulo Blank é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, psicanalista e pesquisador]