O novo Papa pode revolucionar a Cúria Romana, dizem em coro padres e teólogos progressistas. Francisco é o homem certo para reformar o Estado-Maior do Vaticano, alvo de denúncias de corrupção e baixarias nada santas. Mas é também um argentino com um passado opaco, o que deixa cautelosos os defensores de uma Igreja sem segredos e silêncios, relacionados no inconsciente coletivo com o lado mais negro da história da cúpula do catolicismo.
A polêmica já começou. As denúncias de que o cardeal Jorge Bergoglio compactuou com a ditadura argentina nos anos 70 levaram o Vaticano a defendê-lo, mas religiosos e leigos católicos afirmam que o então chefe dos jesuítas foi omisso diante dos crimes da ditadura militar em seu país.
“Uma espécie de dom Eugênio Sales da Argentina”, diz Frei Betto, escritor e também um dos sete dominicanos presos no Brasil por oposição à ditadura em 1969, comparando o atual Papa com o cardeal do Rio de Janeiro que sempre evitou atritos com os militares.
Era uma época difícil de manter a neutralidade. A guerra suja argentina deixou algo entre 9 mil e 30 mil mortes em sete anos de luta contra os “subversivos”, como eram chamados os opositores do regime militar. Entre eles, sumiram cerca de 150 religiosos que destoaram do apoio maciço da Igreja à ditadura militar, numa atitude comparável à cumplicidade aberta dos padres à caça às bruxas promovida por Franco durante a guerra civil na Espanha. Ou ao silêncio do Papa Pio XII durante a Segunda Guerra, interpretado como um apoio mudo aos nazistas e fascistas. Ao contrário da posição combativa do episcopado brasileiro, na Argentina, capelães participaram dos voos da morte, uma trágica invenção que consistia em lançar os opositores – vivos ou mortos – de um avião para o fundo do rio da Prata. Católico, o então chefe da junta militar chamava um padre para dar a extrema-unção aos condenados à morte. “Pelo menos, um deles foi julgado e condenado”, relembra Ivo Lesbalpin, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), também padre dominicano levado para a cadeia em 1969 no Brasil.
Muitas histórias
O jornalista Horacio Verbitsky reiterou sexta-feira (15/3) as acusações de que o Papa teria entregue à polícia dois jesuítas, denúncias já feitas no seu livro O Silêncio, nome da ilha da Igreja emprestada aos militares para guardar presos – como O Globo publicou. “Tenho provas”, diz. Outros militantes lembram que Bergoglio repreendeu os jesuítas por aderirem à luta armada contra o regime, mas não sabem dizer se os dois foram sequestrados por alguma omissão do atual Papa.
Verbitsky, em entrevista, também critica o Papa por dizer à Justiça que não havia documentos no episcopado sobre os “desaparecidos”durante a ditadura: “Eu publiquei a minuta de uma reunião em que Videla ( o general presidente entre 1976 e 81 ) discute com a comissão executiva episcopal o que fazer com os ‘desaparecidos’“. Segundo o jornalista, só em 2012 o mesmo documento foi mandado à Justiça, o que comprovaria a tentativa de acobertar o conhecimento da Igreja sobre os assassinatos de presos. Referências à ligação do Papa com a ditadura também estão num telegrama da embaixada americana na Argentina, vazado pelo WikiLeaks.
Ao biógrafo Sergio Rubin, o ainda cardeal Bergoglio contou em 2010 uma história diferente: teria escondido os perseguidos em propriedades da Igreja e uma vez entregou seus documentos a um perseguido para ajudá-lo a cruzar a fronteira. Tudo isso silenciosamente. Em público, a Igreja fazia campanha para os argentinos declararem seu amor à pátria – e aos militares. “Ele não esteve à altura dos dramáticos acontecimentos”, disse Gabriel Pasquini, um roteirista argentino, ao repórter Jon Lee Anderson, da revista New Yorker.
Enquanto isso, no Brasil – benza Deus –, o roteiro era inteiramente diverso. A ditadura foi longuíssima e duríssima, mas a maioria da Igreja lutou contra a tortura e pela democracia. O flerte entre episcopado e militares no golpe de 64 acabou rápido e logo começaram os conflitos entre a ditadura e bispos – dom Hélder Câmara à frente –, militantes da Juventude Católica, padres dominicanos e jesuítas. Em 1970, o Papa Paulo VI condenou a tortura no mundo – não citou o Brasil, mas a carapuça serviu – e no dia seguinte nomeou dom Paulo Evaristo Arns como arcebispo de São Paulo, que abriu um front permanente de denúncia dos porões e da ditadura. Frei Betto conta que dom Paulo teve de interferir na Argentina para evitar a separação de 3 mil bebês de suas mães sob o argumento de que não poderiam ser educados por comunistas.
Aqui e lá muitas histórias não foram reveladas, e o novo Papa ajudaria muito se abrisse o baú de seus segredos e os da Igreja do seu país.
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Helena Celestino, do Globo